Romance A estranha vida de Dolores Moreira faz em progresso e poética uma recolocação do olhar sobre o processo do amor

Fernando Andrade

Crítico Literário e escritor

 

Os genes propagam dados sobre questões de cunho físico: está lá no mapa genético da pessoa como ela pode ser: alta, loura ou morena, encorpada ou não. Diria que ele é quase um narração evolutiva do que virá à ser, dentro claro de interferências externas, pois, o social nos molda pelo que temos de perpetuação social, adquirimos brio, cor, textura pelo entorno, como ele nos inspira em sua perplexa mirada. A literatura também tem seus genes que podem ser hereditários quando amamos a leitura como ponte entre olhares: uma geração à outra.

Quando tomamos um autor que está mais “antigo” que nós para vasculhar seu coração-autor, colhendo segredos de autoria do que ele ou ela tem de mais generoso em recordar sim, pois, este verbo tem algo de infinitivo com relação à perpetuação da espécie literária. Assim quando leio Caio Fernando de Abreu especificamente o livro que usarei como recordação para a escrita desta resenha que foi escrito lá na década de 90, Onde andará Dulce Veiga , (cia das letras). Estou recronicando um pouco a ode das horas quando percebo em Caio uma terna leitura de Clarice Lispector. Sim, caro leitor, o reino da leitura obedece as horas do silêncio entre a morte do ouvinte, aquela pausa entre o pausar do dedo, e atenção desmedida na frase longeva. Pois no livro do Caio faço do pertencimento, para horas vagas em que durmo no texto, em que me deito agora.

Um belo romance chamado de forma irmã à este do Caio. A estranha vida de Dolores Moreira, da escritora Adriele Amaral, lançado bem agorinha pela editora patuá. Mas porquê falo nisso? Nestas aproximações entre autores e gerações? O cuidado da viagem é fruto de uma descoberta que passa pela trama, mas também pelo pendor existencial da vocação de onde me questiono como viajante-leitor, também literário, pois se para toda viagem há um caminho, onde também há pedras valorativas do esforço de leitura em acompanhá-las ou pulá-las poeticamente. Esta viagem Caio fez com Dulce, sua personagem cantora que vai parar numa cidadezinha para fugir do passado. Não caro, leitor, não traia a parescência. Ela é arquetipicamente a lira dos poetas & romancistas, ela é o verso colocado na partitura da história da literatura. Aqueles estranhamentos de Clarice… os vejo agora no garrote de escrever de Adriele, como no carinho de Caio com sua cantora desaparecida. Onde andará Dolores? onde andará a dor de cantar de Dulce Veiga?

A autora Adriele estrutura seu romance de forma musical e gradativa ao colocar uma adolescente como narradora e voz de interlocução com a humanidade dos personagens que transitam por uma cidade do interior. Ali Juliana com sua profunda humanidade tencionará a eterna curiosidade sob o estranho olhar do que difere, do que gera a fagulha da aproximação entre pessoas, o básico estranhar, do que esta pessoa carrega, e o porquê ela veio para cá. Caio tinha uma profunda humanidade pelos seus personagens. Ele indagava a fundura de um. Aqui vejo a autora ir de mecanismo à mecanismo internalizar a narrativa em novelos sobre como o olho-olhar enovela ao mesmo tempo que desvela a quantidade de poeira que tem a intimidade de um ser que carrega ontologias que trafega vivências. O microcosmo de uma cidade é muito rudimentar para a lupa detida de um escrutínio de um escritor? Como se dá as relações dialógicas entre atores sociais onde normas culturais e retidões idem são espaçadamente analisadas com afinco e cuidado.

A vida que não se quis, a vida com ela é. Estes traços e rejuntes do que poderá ter sido, só a ficção pode nos dar, estas poéticas respostas. Há claro, uma formulação de gênero, onde para narradora é preponderante perguntar antes do mundo, a cidade, questionar os valores daquela mulher, suas angústias para que servem.  Diante da pequênes conservadorice do lugar. Juliana tece o lugar de fala, desta mulher que como Dulce reformulou a página de vida, girando a narrativa para outra afecção de pertencimento. O livro seria um processo de maquinação do mundo, assim com Carlos Drummond fazia a maquinação de sua Itabira, grudamos uma segunda via que é a ficção neste vácuo, que nos assina coisas e desvelos, que às vezes, nós não queremos e só a ficção nos redimirá.

 

Cotação: Ótimo

 

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