“e sussurrou um Deus qualquer no ouvido da alma” – Três poemas de Leonardo Cattoni

 

ALFORRIA

Quanto
mais escrevo
menos me escravo.

 

 

TRANSITORIEDADE

Você fecha a persiana,
a gaveta dos organizados talheres,
guarda o último copo,
esvazia a lixeira,
passa o peito da mão no lençol amarrotado
estendido na cama,
vira a almofada do sofá que de costas estava,
remexe na vela do castiçal porque ereto precisa estar,
sopra a poeira do cristal,
arruma com o pé direito o tapete da porta de entrada,
passa os olhos em tudo pela última vez e fecha a porta.

Tudo o que você quer é voltar
e encontrar tudo em ordem, tudo como deixou.
Impossível, claro.
Você pode, inclusive, nem mais voltar.

 

 

O SORRISO DA TRISTEZA

Sorriu para o padeiro
ao saber que o pão havia acabado,
e passou a mão na cabeça de uma criança abandonada.
Sob chuva,
parou para escutar um pedinte,
cumprimentou o porteiro noturno que cochilava,
e sussurrou um Deus qualquer no ouvido da alma
Ela não é disso.
É que estava muito triste,
e tristeza faz isso com a gente.

 

 

Leonardo Cattoni

Nasci na cidade de Curitiba, PR, em 1980. Atualmente moro em Belo Horizonte, MG. Sou tradutor, professor de inglês e “fazedor de bicos”. Escrever me é um remédio. Tenho muitos contos, minicontos e poemas engavetados que logo logo serão libertados por um livro. Recentemente fui publicado por uma revista literária digital. 

Please follow and like us:
This Article Has 3 Comments
  1. Alice Reply

    Profundo, de uma sensibilidade ímpar! Te amo demais!

  2. Marcela Salum Reply

    Leonardo Cattoni, gostei muito. Você escreve muito bem. Seus poemas são simples e dizem muito. Eu tb gosto muito do seu olhar, sempre querendo dizer algo e não dizendo. Essa sua foto hipnotiza qualquer um. =)

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial