Livro de contos “Enterrando gatos” tensiona as relações sociais nem sempre tão aéreas, porém, sempre mareadas em fortes correntezas de estranhamento

Fernando Andrade 

Jornalista e crítico literário

 

O autor é um colecionador de emblemas, arquétipos. Principalmente o autor que se motina a sair desfraldando a bandeira do conto, como às avessas ir contra a correnteza que muitos sabem pela margem do reconhecimento ser a labuta do romance. O autor, então, que se amotina nesta nau aventurosa lhe convém conversar e inteirar a arte da pirataria. Sinto que o conto aproxima-se da peleja do roubo. Arte de surrupiar motes e enredos dos diletos autores que singraram seus navios por esta linha do horizonte onde só se vê bravias zonas oceânicas vastas profundidades onde leitor e autor viram quase co-autores um do outro. Pois o leitor do conto deve e pode ser autor-posterior. Já pegou esta carta náutica e sabe exatamente onde ir norte, sul, leste e oeste em que pé estamos nesta corrente literária.

Rafaela Tavares Kawasaki em seu primeiro livro de contos, Enterrando gatos, editora Patuá, sabe exatamente onde embicar a proa destes textos que buscam além do exímio labor da linguagem, modular a área certa de zonas sombrias onde o conto deve descer à 1000 pés para fazer o leitor sufocar em falta de ar, sua respiração leitura o motiva ir mais fundo. A narrativa da autora obedece à todas as regras do mergulho: despressurizar quando a tensão que seus relatos brotam do véu do desconhecido. É preciso estar envolto com uma boa roupa de entranhamento que Rafaela em contos como Enterrando gatos demonstra não ter folego pequeno ao quebrar estereótipos familiares de atenção e afeto. Todo seu texto tem uma rugosidade de absorver o que chamo no conto: a arte do desvio.

Sair da normalidade do cotidiano mais pasmado, para ir além do aspecto mundano e às vezes chamar o recalque de uma molécula de H20. Não me atrevo a dizer que seus personagens tocam a aquosidade da neurose, porém, como o casal que não gosta de barulho, aqui a cegueira auditiva é um sentimento de repulsa ao ouvinte externo. Como não se deixar entornar pelo meio? Num autismo social, o casal talvez sinta algum tipo de culpa quando descobre a ausência de som do apartamento vizinho.

Rafaela sai se bem como se saísse do mar envolta em algas ou algos sobre como olhar o real como no caso de um marido morto e velado em casa pela mulher, frutas estragadas. Atos que não se explicam e nem se justificam como responsabilidade social, o morto não se deixa enterrar; ironizando as funções sociais da morte. No conto que fecha o livro Poesia de rodoviária, toda relação entre veículos de massa repercussão de mídia, numa área de trânsito, onde a poesia é uma espécie de salvo-conduto em um território de ninguém, onde todos passam anonimamente, não há marulho de onda nem barulho de verso.

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