Caudaloso, um rio sobre mim, em suma história…
Podem ainda dizer que era “caviloso, um tipo esquisito”, minha mãe assim me descrevia, sem cerimônias; mas havia, de fato, uma torrente que me imergia, forçosa; condicionava-me ao pequeno e circunscrito espaço da minha existência.
Em vida, arrebentava-me incansável na busca pela perfeição. Como? Outro miserável, o meu psiquiatra, o doutor Abdias de Aquino, tentou a todo custo me ajudar – não foram poucas as vezes que o acordei altas horas da noite querendo entender uma palavra específica da nossa última conversa-terapia. Ele, vacilante, já não sabia o que fazer. Suplicava, “Pelo amor de Deus, Hidelbrando!”, sendo ateu.
Diagnóstico tardio: acometido pelo transtorno do vício da perfeição, atrelado à depressão, à desordem alimentar, à ansiedade etc., etc., etc. Com o mal da “pressão inconsistente”, cobrava-me a mim horrores e, obviamente, não me via satisfeito; atribuía às pessoas que me aguentavam o malogro da minha jornada. Houve momentos em que me senti em posições diametralmente opostas: o implacável carrasco, açoitando na subida íngreme, e o burrinho de carga, num recôndito perdido deste largo país-continente, invisível, exaurido. Fui me esfarelando em minúsculos pedaços, tal qual lajotas, blocos de concreto, que se despregam de prédio mal-amanhado, sujeitando a vida dos passantes; esmigalhando no chão e perdendo o viso, com o impacto da queda.
Os poucos que tinham coragem de se chegar diziam: “Hidelbrando, és um vencedor!”. Não dava a mínima a tais baboseiras, se era obrigado a vencer, dia após dia, a cada amanhecer – o pleonasmo e o exagero são propositais –, as minhas arrelias, o meu temperamento mortificado.
Eu tinha um espírito ruminante, além do mais. Criam que minha insônia crônica derivava de um cérebro pensante, admirável – no entanto, só eu sabia, ruminava a dor; o que as pessoas pensavam de mim; o que devia ter aprimorado no dia; o que deixei de fazer; o que não pude dar à Maria…
No fundo, no fundo, conhecia o motivo de Maria ter me deixado. Ela tinha razão. Ficar com um cabrunco deveras problemático era mesmo de se debandar. A incauta preservava aparente normalidade; deveria buscar refúgio. Nos nossos últimos meses não a via mais que duas horas por dia. Quando saía para pegar ar e abastecer os bolsos, fora do porão de casa, onde tinha montado o meu búnquer anticivilizacional, via Maria chorando copiosamente.
Naquela dimensão mundana, foi somente com a sua ausência, da única mulher possível de me aturar, até então – nem minha mãe o fez, sem o peso da obrigação parental –, que percebi ter ido longe demais. Admito que fui egoísta, até certo ponto. Não quis dar um filho à Maria.
Maria era de boas prendas, mulher diligente, ama segura; todavia a nada seria permitida a sujeição à minha desgraçada existência. Quanto ao filho, se ainda tivesse a oportunidade de conversar com ela, a grande questão era expor ao mundo um gene amaldiçoado como o meu, de um sujeito com o pai esquizofrênico e a mãe degenerada pela droga – vários problemas psíquicos devia ter, decerto.
No dia dezesseis, há um mês, parti dessa para pior: um infarto agudo do miocárdio. Estatelei-me, teso, na mesa do laboratório da universidade. Só o segurança viu, duas horas depois. Era domingo.
Alojaram-me, sem sobreavisos, num breu danado, uma descontinuidade. Não se conjectura se vai para cima ou para baixo; se chegará um cristão para me orientar nesse calabouço. Fico contando minutos imaginários para passar o tempo. Que tempo? Que lugar? Enfim, perde-se a orientação. E eu que pensava não a ter. Mas quem pôde conter
o meu ímpeto voraz à degradação?
Embora essas agruras tenham me atormentado no campo material, não pude estimar uma tal satisfação suprassensorial, a premiação do Nobel – diga-se de passagem: o primeiro brasileiro a obter tal feito –, dada à minha esposa, de cerca de um milhão de reais, pelos estudos que desenvolvi com proteínas sintéticas para o combate do vírus HIV. Depois de perder minha mãe, e achar tão mesquinho o empenho global nesse sentido, dediquei os meus derradeiros dias à cura. Virei o centro das atenções, post mortem.
– Já dei o que tinha de dar, insaciáveis sanguessugas! Esqueçam-me! –
Adriano B. Espíndola Santos. Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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