Fernando Andrade entrevista o poeta Marcus Groza

Fonte da foto: Tiago Fabris Rendelli

 

 

FERNANDO –  Há uma interessante mediação entre o estado do movimento que o corpo pode ou dever perpassar em sua continuidade anímica (vida) e um corpo então interiorizado em seus ma(l)zelos, em suas cordas internas tesas ou tensas aglutinando em sim uma fúria de intempérie – série, crise do humano enquanto potencialidade criativa dentro da “sujeira” do corpo, suas pulsões em fazer da arte pulso ou pote(ncia) criativa. Fale disso.

MARCUS – Do que pude compreender da sua pergunta, posso dizer que o que persigo na poesia é uma possibilidade de produzir certa neblina, uma turbidez que venha a nublar as fronteiras, fazendo vazar os olhos dos dualismos em que estão baseadas nossas “certezas” (cultura/natureza, interior/exterior, eu/outro, sujeira/higiene, etc). No livro “Milésima demão nas paredes de estar perdido” (Editora Urutau, 2019), que você leu –  especificamente na primeira seção intitulada “à maneira dos avós” – os poemas são construídos mediante um movimento duplo: um diálogo irônico e errático com certas formas da tradição literária (soneto, villanella, metro, etc) e uma contaminação discreta pela realidade cotidiana, sobretudo a observação do espaço público. Nessa primeira seção, há mais claramente uma reverberação desses ‘ma(l)zelos’, como você diz. No entanto, acredito que ao logo de todo o livro se encontra um mal-estar que é tanto subjetivo quanto social, acompanhado de certa ênfase na urgência do “desaprender”, na deposição das couraças com que a língua, a cultura, a vida social vão nos cingindo ao longo do tempo. Nesse sentido, destacaria os versos finais do poema (“ruas de desaprendizagem”) que encerra essa primeira seção: “não é só você e seu desespero/ que passeiam pela rua// desaprender demora três corpos/ sete gerações/ a extinção desta língua”. Particularmente, não acredito em ‘crise do humano enquanto potencialidade criativa’, intuo que os processos sejam cíclicos. Se for falar em ‘crise’, eu falaria de uma crise do humanismo, o que me parece uma linha de força urgente hoje. Sei lá, num elã quase pré-socrático, digamos que tudo é água, então há uma “monarquia da água”: ela mobiliza e atravessa o social, seja hidratando os corpos, seja fertilizando o solo, seja purificando as pessoas em banhos e ritos. Como transito muito entre o campo e a cidade, pra mim reside nessas coisas uma potência incrível capaz de fecundar a escritura. Mas me interessa sobretudo enfatizar que essa “monarquia da água” terrivelmente devasta, mata e provoca catástrofes. Ela desconhece as regras sociais e morais, não diferencia piedosos e devassos, como a peste que descreve Antonin Artaud. Então, acredito que em alguns dos poemas do livro ressoa algo dessa ‘fúria da intempérie’, como você diz, inclusive como precipitação de forças extra-humanas, cósmicas. Lembro um fragmento de Heráclito: “a mais bela harmonia cósmica é semelhante a um monte de coisas atiradas”. Aí no sentido dessa “fúria da intempérie”, o corpo é um termômetro da metamorfose, lousa de estigmas, fraturas e rastros deixados por uma potência elemental em sua passagem. Há no corpo toda uma cartografia acidentada, ele é sede de uma geologia cósmica. De modo geral, gosto de cultivar um apreço pelo “sujo”, como instância não-civilizacional do corpo-linguagem. Isso, claro, à revelia de nosso tempo que glorifica a transparência, o comunicacional, o ideal masculino e raciocinante da assepsia. Vivemos os tempos do álcool-gel, inclusive a produção artística padece desse ideal asséptico. Um dos poemas do livro (“Carne de Sol no Bolso Esquerdo”) fala disso, menciona a “ereção” do humano que se pôs em pé e se julga superior aos outros animais, lembrando o que fala George Bataille. Então, se tivesse que destacar algo que faz precipitar a potência criativa, certamente seria o contágio e as múltiplas potencialidades da arte em emascular essa “ereção” do humano que, dignificado, afastou o nariz da terra. Uma vontade de lodo talvez, onde a dessemelhança assedia a semelhança, como evocações de forças monstruosas, não-civilizáveis.

 

FERNANDO – A meta-arte (literatura), aquela que percebemos pelo poder de observação em estar olhando os mecanismos de sua fábrica poética, de seus fios de novelar a forma. Me parece que há uma preocupação sua em manter esta forma visível através de recursos do som, da sonoridade do poema. O que faria sua semântica ter mais força na leitura do leitor, um leitor diríamos mais polissêmico.

MARCUS – Não tenho dúvida de que as palavras foram feitas pra mentir. Em certo sentido, o poeta e o demagogo usam as mesmas palavras. O que as diferenciaria? Há um poema do livro “Sossego Abutre” (Editora Patuá – 2015) que escrevi pensando nisso: “Usar a palavra/ mesmo sabendo/ que feita qual pele/ para ocultar e encobrir./ Com as palavras/ poder aos poucos/ transvestir./ Atrás da nudez dos nomes/ ousar a palavra.” A diferença talvez seja então não usar, mas “ousar” a palavra, no caso do poeta: não se detendo a elas, antes perseguindo o que se projeta a partir delas. Duchamp fala que não lhe interessam os tubos de tinta, interessa uma espécie de pintura-trampolim, que nos lança para além da visão retiniana e do visível. Na escrita, acho interessante operar também nesse sentido. Não tenho a mínima preocupação em manter a forma visível, me interessa o lugar para onde a forma pode nos catapultar. No nosso tempo, há um forte imperativo de visualização e portanto uma ênfase na forma exterior (propaganda). Por isso acho importante reiterar que numa obra de arte a prerrogativa está no jogo de forças (e portanto no invisível que precipita por meio do visível), em detrimento de qualquer ênfase formalista. Em outras palavras, na arte, o que conta são as forças que atravessam uma matéria, a forma não é o ponto de chegada, a forma é um veículo, como diz Giuseppe Penone. Um veículo: às vezes um rio, às vezes um cavalo. Quanto ao “Milésima demão…”, mais enfaticamente que nas produções anteriores, é um livro afeito à exploração severa de recursos formais, sobretudo do enjambement e da melopeia. No entanto, isso acontece dentro de uma estratégia em que a exploração insistente dos recursos formais – a sobreposição de ‘demãos”, digamos – está intimamente vinculada a um caminhar errático, à extravagância do “estar perdido”, onde a sobreposição de camadas flerta e se equivale ao escorchado, à raspagem, ao apagamento. No posfácio generoso que a querida amiga e escritora Lilian Sais fez para o livro, ela comenta um pouco a respeito, a certa altura ela anota que “há algo do concreto mesmo” nos poemas. E eu diria que a depender de como se lê, talvez alguns poemas possam ser considerados “duros”. Foi o que uma pessoa comentou quando leu a villanella da primeira seção. Então, comecei a entoar o poema e ao que parece a impressão se alterou um pouco. Não que o poema tenha deixado de ser duro (rs), porque a pessoa retrucou que aquilo – o que eu estava cantando – não estava no texto. Acho que são poemas que exigem do leitor não só quanto à semântica, como você destaca, mas também quanto à prosódia. Talvez sejam poemas que pedem que o leitor vista os versos com a voz e ainda assim não sei se seriam vestimentas confortáveis.
 
 
FERNANDO – No primeiro poema, há uma linda relação de causa e efeito, entre lugar e desejo, entre ser e pertencimento. Alguns versos nos mantêm atados a esta carnalidade doída do viver quan(d)to o afeto nos basta ou nos desintegra. Há uma certa ode à família ali esboçada entre tantas vozes metaforizadas por imagens discorrentes? Fale disso.

MARCUS – Esse primeiro poema do livro se chama “Retábulo com Jesus e avarios”. Retábulos são estruturas ricamente ornamentadas que compõem alguns altares das igrejas e apresentam cenas e figuras religiosas com finalidade de elevação espiritual. No poema, desde o título, vê-se que os ornamentos seriam os avarios, e a inadequação e o padecimento carnal se espraiam nas recomendações que são de fato proibições, na vida que dizem que persevera, quando na verdade se arrasta, longe de qualquer elevação espiritual. Até os versos finais: “porém só o chão seria um rim para o sangue rude/ velho dos avós que recusam a dar-se em libação/ e voçorocam a terra nas calejadas veias dos netos.” Não há em absoluto nem sombra de uma ode à família, muito pelo contrário. A urgente tarefa do desaprender começa com a subversão dos valores familiares. Há um familismo muito entranhado no senso comum. Como muitas vezes recebemos afeto e força proveniente da família, temos dificuldade em ver como ela também é o manancial de uma infinidade de preconceitos que infelizmente replicamos. Por isso nesse poema há, por exemplo o verso “a herança paterna é deserto esculpido no dorso”.

 
 

FERNANDO – Pintar uma parede é o mesmo que pintar o quadro? Entre o labor de um e a estética de outro, o que temos em Milésima demão nas paredes de estar perdido?

MARCUS – Se pintar uma parede e pintar um quadro certamente não são a mesma coisa, também não me parecem atividades facilmente hierarquizáveis. Lembraria de Willem De Kooning, um dos meus pintores prediletos, que na juventude trabalhou como pintor de paredes. Aliás, se pensarmos em Lascaux ou em outras cavernas com pinturas pré-históricas, talvez hoje em dia, na arte contemporânea, “pintar parede” faça mais sentido do que “pintar quadros” no sentido vasariano. Não acredito em absoluto que seja válida essa diferenciação entre labor e estética. Acredito que toda delimitação do que é estética – tentando separá-la de outras atividades – resulta como algo elitista. No livro, a aproximação que há em um dos poemas entre Santos Dumont e a Bancada Ruralista metaforiza essa aversão ao elitismo. O que me interessa na arte é a conjunção dos campos e não a demarcação de territórios.
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