Fernando Andrade – Há uma tensão boa entre a síntese filosófica, que ao mesmo tempo tenta conceitua, e o deslize lacunar do sentido do poema e uma existência também lacunar do haiku. A filosofia requer certo desenvolvimento da linguagem: um excesso. E a poesia do haiku -contenção e imagética, em pouco espaço. Como equalizar essa espécie de dicotomia?
Tito Leite – Sou formado em filosofia, alguns pensadores sempre me acompanham, como os autores da teoria crítica. A minha dissertação foi sobre a arte e a técnica em Herbert Marcuse. Sempre revisito Martin Heidegger. Considero Michel Foucault mais atual que nunca, principalmente numa sociedade de fascismo crescente junto com o seu racismo de Estado. E gosto bastante do Peter Sloterdijk, que troca a coruja de Minerva pelos pardais do telhado.
O Digitais do Caos, meu primeiro livro, carrega toda a minha influência filosófica e poética, enquanto no Aurora de Cedro, estou mais preocupado com as próprias questões do poema. Gosto muito do haicai, da sua precisão e singeleza, e de modo especial, do seu silêncio em forma de relâmpago. Nesse fazer poético, aprendo que “em poesia menos é mais”. Não é por acaso que o poema “Paisagens” é dedicado ao José Lira, um grande tradutor do Matsuo Baschô. Nessa direção, procuro a concisão, até porque acredito que um poema não precisa de malabarismos poéticos, apenas exige um trabalho de linguagem e deve ser certeiro como uma lâmina afiada.
Não vejo uma dicotomia aí, desde que o poeta saiba que fazer poesia não é criar conceitos ou jogar nomes de pensadores ao léu. Acredito que cada poeta tem sua caligrafia, no entanto, ele deve arriscar a sair da sua zona de conforto. Meus poemas sempre são imagéticos: antes, eu acreditava que a imagem sustentava o poema, hoje penso diferente e tento conciliar imagem e sonoridade. Esse foi o meu desafio, trabalhar som e imagem.
Fernando Andrade – Apesar de tocar em temas como psiquiatria, medicação, seus poemas não caem num pessimismo niilista sobre o adoecimento do ser, que muitos escritores europeus situam numa literatura atravessada por crises pessoais e sociais. Seus poemas parecem que carregam a leveza da pluma, a dialetização entre o peso da existência e a leveza do devir, da criação que nunca é momento. Quando passamos a ideia para o papel, ela já virou passado-lembrança? Fale disso.
Tito Leite – Sou um leitor de Charles Baudelaire e de poesia russa. Com o primeiro, nasceu a vontade de trabalhar a fealdade do real; com os russos, o mergulho na densidade da vida, tal como ela sangra em todas as suas mazelas, mesmo quando pedra bruta. Para fugir do niilismo, escrevi a última seção: são poemas de amor, porque mesmo com todas as doenças e grilhões que padronizam a existência e muitas vezes alimentam o que há de pior no ser humano, conservamos a nossa capacidade de amar. Contudo, não ofereço portas ou receitas, como diz muito bem o Jardel Dias Cavalcanti, numa resenha sobre o meu livro. Aurora de Cedro é um espelho quebrado e se o leitor esperar um caminho de salvação, vai cortar os pés.
Fernando Andrade – Você trabalha muitos temas e ideias num só poema. Eles parecem uma só correnteza num rio que não tem margem, pois ao mesmo tempo em que estão represados, são livres dentro de um mesmo poema. Fale disso.
Tito Leite – Sua leitura foi perfeita, há muitos poemas num só poema, assim como muitas imagens numa só imagem. Quando escrevo, refaço e refaço até ficar como eu quero. Procuro escolher a melhor imagem e, muitas vezes, a melhor encontra-se numa simples palavra. Nessa busca, passo o dia em estado de vigilância, à espreita da melhor palavra, seja numa leitura bíblica, numa intertextualidade com algum autor ou na contemplação de algum fenômeno do cotidiano, por exemplo: das guelras de um peixe pode sair um verso que carregue multidões. Justamente por isso, tenho a necessidade de refazer, cortar versos e até dividir os poemas, assim como mudar sua forma. Outras vezes, um poema é como um manto de Penélope: um tecido trabalhado sem fim. Não sou um técnico da palavra, mas faço uma experiência de cama com a poesia para melhor colocar no verso todo o nó da minha garganta.
Fernando Andrade – O que é uma metáfora dentro do poema? E como é seu sentir-imagem para que a imagem perca de você, sua identidade? Para tornar-se ela mesma uma questão identitária dentro do poema?
Tito Leite – Quando comecei a fazer poesia eu levava a risco as lições do Manoel de Barros, de modo especial, sua sinestesia. Achei lindo quando ele escreveu que quando desejava falar do pôr do sol, dizia algo como “um passarinho pousou na parede da tarde”. Gosto da definição de metáfora como a transposição dos sentidos, entretanto, a própria palavra “sentido” é carregada de sentidos. Se Heidegger diz que o Ser é o conceito mais amplo e ao mesmo tempo mais ambíguo, acredito que isso também vale para as metáforas, o próprio título do livro é uma. Com Rimbaud, compreendi a metáfora como uma alquimia do verbo em que o próprio poeta tem que se tornar anômalo, no seu desregramento dos sentidos, pois para ele a “lágrima de uma vela vale mais do que a flor”. Além disso, evito fazer das imagens uma roleta russa ou uma poluição imagética. Nesse sentido, explicito que é necessário o cuidado para não colocar o leitor num quarto fechado que não entra ar, exatamente por isso, não abro mão da minha lixeira e do ato de lapidar.
Quando começo o poema, deixo que ele tome a própria identidade. Como faço isso? Observando qual a melhor forma: começo pensando num poema curto e alongo ou, ao contrário, corto versos e tiro os seus excessos, mudando algumas palavras e então percebo que já está como eu quero, muitas vezes, com outro rosto. Então, assim como comecei essa resposta com Manoel de Barros, concluo com ele: “repetir é um dom de estilo”.
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