Camila Assad nasceu em Presidente Prudente em 1988, autora de “Cumulonimbus” (Quintal Edições), “eu não consigo parar de morrer” (Editora Urutau) e “Desterro” (Edições Macondo), a ser lançada na FLIP (Festival Literário de Paraty) agora em julho. Ganhou o prêmio do ProaC/SP na categoria criação literária – poesia com a obra Desterro. Atualmente vive em São Paulo.
Fernando – Há uma potência nos seus poemas ligada a um movimento cinético, porém contaminado por um ceticismo. Talvez, com se o sentido demorasse a deslocar-se de espaço (lugar). Uma contradição muito ligado à forma do poema do que propriamente relações de conteúdo. O efeito estético é interessante. Fale disso.
Camila – Acho que a poesia é sempre movimento, existe sempre um mover-se, um trajeto, um percurso para se chegar aos fins desejados. No caso do “eu não consigo parar de morrer” eu estava em um deslocamento físico constante na época da elaboração da maior parte dos textos, passava metade da semana em um local e outra metade em outra, muitas horas de estrada, muitos quilômetros percorridos, então talvez isso tenha entrado de uma forma inconsciente nos poemas. Era também um momento de tensão, de transformação no cenário político nacional, todo mundo ao meu redor estava agitado, então havia movimentos antagônicos de paralisação e de articulação. Na verdade, eu diria que mais do que um ensejo de deslocamento há uma busca por pertencimento, isso nos sentidos denotativos e conotativos. Estou sempre à procura da minha Pasárgada, sempre incomodada com um possível status quo. E não encaro o ceticismo como algo que se opõe ao movimento. Tenho bastante fé no poder da arte e da criação, na sororidade e nos movimentos de emancipação femininos, na força imperativa da natureza… Sem querer ser piegas, mas já sendo, a vida é movimento, nada é determinado ou permanente. A poesia não sai imune disso.
Fernando – A ação nos seus poemas são desconstruídas por algo que “fratura” seu cerne sentido. Não é uma negação do sentido-ação. É uma dialética poética sobre talvez a arte da ambiguidade. Como foi feito este desenho na sua síntese-gênese?
Camila – Pode ser. Tenho lido muitos autores que trabalham com essa quebra do movimento lógico de um ínicio/meio-/fim. Penso que não faz mais muito sentido o excesso de metáforas, as figuras de linguagens óbvias, aquela busca pela tríade poundiana, o padrão canônico. Eu comecei a traduzir um livro da Gertrude Stein que tem mais de cem anos, e ela já estava em um movimento totalmente libertário, uma coisa fenomenal. Então essas leituras e traduções me influenciam sim, eu busco de fato uma fratura, um caos, uma desordem. São experimentações. Eu venho tentando sair do eu, estou em uma tentativa constante de desconstruir o lirismo exacerbado, meus estudos têm se voltado pra quebra da obviedade poética, pra quebra da primeira pessoa, então nunca é exatamente sobre mim. Nesse próximo livro que sai agora na Flip há apenas um poema que falo como a Camila, que é uma carta descontraída e informal para uma amiga, refletindo o peso da maternidade. O resto é sobre uma questão bem maior, que é o papel das mulheres na cidade, das mulheres da periferia, das mulheres em situação de vulnerabilidade social. Perto do todo observado, a aflição do eu passa a ser muito ínfima, embora exista, claro. E é aquilo, tem tanta coisa linda e nova surgindo, que não faria sentido para mim elaborar um soneto alexandrino.
Fernando – Na seção três que fala sobre os homens ou companheiros há um exercício da ironia. Mas o mais interessante é que esta parte esta cheia de desejo pela potência do devir – irrealizável, como um devir criativo, calcado em algo não “produtivo” (homens). Que gera ação em curso.
Camila – Esse capítulo é irônico sim, e todos os homens descritos são inspirados em homens que eu conheço mesmo, em familiares, em amigos, em companheiros de amigas. O machismo é estrutural claro, e temos que lutar contra isso. Mas aqui entramos em questões muito complexas, lógico que nem toda mulher pode simplesmente falar um “foda-se” para um cara babada e tocar a vida, relacionamentos e dinâmicas familiares são coisas complexas. São poemas que usam do humor como recurso, não tive intenções de provocar grandes reflexões sociais, pelo contrário, as reflexões me levaram à escrita. Rolou casos de homens leitores falaram “nossa, já fiz/faço isso”, e o mais legal deles é que as pessoas dão risada, então fico satisfeita, porque essa série provoca uma reação diferente das outras que já publiquei antes e eu gosto disso, é algo que pretendo trabalhar mais. Eu tenho um humor cítrico que beira a melancolia, estou aprendendo a passar isso para os versos. Adoro a poesia da Angélica Freitas, do Bruno Brum, da Adelaide Ivánova, que trabalham com o humor de maneiras muito inteligentes.
Fernando – As imagens parecem que deslizam pelo espaço semântico do poema. Nada é fixo em seus transcursos. Porém a morte é sua raiz fixa da existência terrena. Portanto há no título um paradoxo? Pois há movimento nesta ação de morrer. Se os poemas deslizam em quase danças sensuais, como é o fim?
Camila – Não é um paradoxo não, é a realidade mesmo. O fim é simplesmente o começo. Ninguém consegue parar de morrer desde o momento que nasce, só com a morte derradeira. Claro que há uma espécie de piada hiperbólica sobre as mortes metafóricas, mas é aquilo: cada dia é um dia a mais ou um dia a menos? O livro em si não é sobre a morte, não é um livro com carga depressiva ou nada disso (talvez a única exceção seja o penúltimo poema, sobre a tragédia de Brumadinho, sobre Minas Gerais. Eu precisava apresentar um poema em um sarau que deveria dialogar com poemas dos anos 80, mas aquilo me baqueou e eu não consegui escrever nada que não fosse sobre o assunto, e acabei colocando no livro), mas no geral nem é exatamente sobre mim. São poemas muitas vezes trabalhados em oficinas, cursos, seguem um molde, são experimentações, conforme eu disse. Como diria Woody Allen (e aqui vou entrar em conflito com o item 3 porque ele deveria ser um homem a se evitar, embora eu confesse que não consigo): “o barato é curtir a vida mesmo sabendo que ela não faz sentido algum”.
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