1 conto de Matheus Arcaro

 

Matheus Amortalha 1 191x300 - 1 conto de Matheus Arcaro

AMORTALHA, 2017, Matheus Arcaro, Patuá

 

 

 

Pode se amar uma palavra?

(Lars Von Trier)

 

Sara ainda está na cama quando o celular vibra. Sorri ao olhar para a tela.

– Oi, amor.

– Alô, quem fala?

– Como assim? Pedro, não é você?

– Não, senhora. Disquei para o número da agenda que estava com o nome “amor”.

– O que aconteceu com meu marido?

– Desculpe por ter que dizer isso. Seu marido sofreu um acidente. A ambulância está a caminho.

Quando Sara conheceu Pedro, ele já trabalhava como moto-taxista. Pedia sempre para que procurasse outro emprego, mas ele dizia que estava difícil, que não conseguiria nada melhor sem curso superior. Depois que se casaram, as solicitações ficaram mais sólidas. Aliás, não era apenas ao marido que Sara pedia. Toda noite interpelava Deus e, às quartas e sábados, os pedidos eram formais, na casa Dele.

Sara nasceu, se alimentou e cresceu numa família evangélica. A princípio, os pais não aprovaram o namoro, Pedro não era da igreja. Sou temente a Deus, dizia Pedro. Ah, meu amigo, entre palavras e ações podem haver abismos cegos; a fé não está cravada na testa da pessoa. Ademais, o velho não gostava da história de vida de Pedro: filho único, não conhecera o pai (que fugiu assim que soube da gravidez), a mãe morrera por motivos obscuros quando ele contava com dezessete anos. Mas Pedro começou a frequentar os cultos, mostrou respeito à noiva, distribuiu carisma aos pais de Sara e, aos poucos, trincou a carapaça da família.

No cruzamento das avenidas Independência e Nove de Julho, Sara vê apenas algo que lembra uma motocicleta. Um monte de ferro retorcido, entregue, impudicamente enfiado na porta traseira de uma caminhonete preta. Onde está meu marido? Pedro, cadê você? Os gritos são anestesiados pela vizinha que presenciou a colisão, água com açúcar. Ele acelerou no semáforo amarelo, mas não deu tempo de passar, disse a velha. A ambulância levara Pedro à unidade de emergência do Hospital das Clínicas.

Prometo-lhe amar, respeitar e ser fiel até que a morte nos separe, repetiu Sara as palavras do pastor, com a boca cheia de futuro. Em seguida, na festa, não abandonou o lenço branco: não queria borrar a maquiagem com a teimosia dos olhos. A viagem de núpcias extrapolou o que ela pedira em oração. Uma semana em Natal, presente surpresa dos pais. Na primeira noite, aquela sensação: após a dor do ineditismo, era como se algo inominável estufasse as paredes internas do seu corpo e vazasse pelos poros. Pedro, te amo tanto. Tanto que chega a doer!

Assim que voltou da lua de mel, o casal se mudou. Pedro acreditava que, na cidade grande, as oportunidades se despiriam com mais audácia, que poderia abrir sua própria empresa de táxi sobre duas rodas.

Ao longo dos meses, as demonstrações afetuosas de Sara ficaram mais sofisticadas, contando, inclusive, com ousadias sexuais. Pedro retribuía. De modo magro, é verdade. Mas era o suficiente para Sara sentir o coração bater violento na garganta.

À recepção do hospital, Sara é informada que o marido se encontra em cirurgia. É urgente estancar a hemorragia no cérebro. Espera por duas horas até receber a notícia de que o sangramento está controlado. Mas os riscos são enormes, dona Sara. E, provavelmente, as sequelas não serão pequenas. O importante é que ele está vivo, doutor!

A enfermeira, após entregar o plantão às 7 horas, encontra Sara deitada nas cadeiras de plástico do corredor. É melhor descansar em casa. Seu marido só poderá receber visitas amanhã. Sara vai. Toma banho, mete um café forte para dentro, com pão amanhecido e telefona à família. Não precisa vir, pai. Pedro vai ficar bem. A partir de amanhã estarei com ele no hospital. Decide descansar um pouco, mas antes, ajoelhada ao lado da cama, ora como se o espírito saísse pelas palavras.

Volta em menos de 24 horas. Entra no quarto e, ao ver Pedro esticado sobre a cama, tenta maquiar a tristeza: solta um sorriso, coloca as flores no criado-mudo e abraça Pedro tão forte quanto no dia em que se conheceram por dentro. Sentada na poltrona ao lado do marido, despeja lembranças por longos minutos. Ele parece sorrir com os olhos. O corpo inteiro com faixas e curativos. Pelados, apenas os pés. O que está fazendo?, sussurra ele com dificuldade. Massagem, não vê? Sara escorrega a unha comprida pela sola do pé esquerdo de Pedro. Antes do acidente, ele daria um salto e soltaria uma gargalhada.

Ela acompanha cada progresso do marido que, em uma semana, já se alimenta sem sonda e conversa com menos dificuldade. Os pontos na cabeça cicatrizam conforme o esperado. Mas os membros não reagem.

Pedro entrou em casa e chamou pela esposa. Mas, desta vez, ela não respondeu. Colocou o capacete sobre a mesa da cozinha, tirou o colete azul claro e, ao observá-lo, lembrou-se do conselho que dera ao patrão. Precisa modernizar esse visual, Oliveira.

Isso parece marca de supermercado. Gritou novamente. E ouviu: estou no quarto, amor. Ele acendeu a luz e, de súbito, foi imobilizado pela lingerie vermelha. Cinta-liga, calcinha e sutiã de renda. Eu sou tua, Pedro. Só tua, pra sempre.

Sara sai do hospital, dois dias sem ir para casa, quando o médico a chama. Acho que já é hora desta conversa, desculpe por ir direto ao ponto. A vida de vocês vai mudar drasticamente. Primeiro, todas as dificuldades de locomoção, acesso às coisas da casa, ele vai precisar de ajuda até nas necessidades mais básicas. Isso não desgruda da minha cabeça, doutor. Há outro ponto importante: a questão sexual. Sara murmura qualquer coisa de afirmativo. Os homens com lesão medular não têm ejaculação. Ereção, talvez. Depende do caso, da reação do organismo. A mulher suspira e limpa o nariz com a manga da blusa. Compreendo, doutor. Compreendo. O Altíssimo há de nos ajudar.

Além de observar os procedimentos das enfermeiras nas quatro semanas em que Pedro ficou internado, Sara pesquisou à exaustão sobre cuidados com tetraplégicos pela internet. Ainda no hospital, começou sua segunda vida. Mas foi quando Pedro passou a depender exclusivamente dela, que ela cedeu sua existência de vez. Transformou-se numa devota técnica de enfermagem.

Segunda noite de Pedro em casa, Sara o banha na cama: pano molhado e sabonete neutro. Lava o rosto e o tórax, os braços e as pernas. Ao pênis, dedica-se com mais afinco. Assim que Pedro volta as vistas para a esposa, ela passa a língua na glande. O que pensa que está fazendo? Não pode responder: está com a boca ocupada. Sara, por favor, não. Ela insiste. Por mais que, no campo da conjectura, Sara soubesse dos entraves fisiológicos do marido, espanta-se ao observar a prática confirmando a teoria. Levanta a cabeça, os olhos de Pedro a perfurarem os seus, como se o passado jorrasse por aquelas retinas. A fisionomia da mulher é mais flácida que o membro entre seus dedos. Pede desculpas e sai do quarto. Volta em alguns minutos, dá-se conta que precisa enxugar e vestir o marido.

Logo que amanhece, no dia seguinte, ela leva ao paciente café com leite e pão integral. Bom dia. Dormiu bem, lindo? Sara, quero que você se masturbe. Agora. O quê? Nem sei fazer essas coisas, Pedro. Não é hora de castidade, Sara! Meu estado fodido te deixa fodida também. Precisa falar assim? Amor, o corpo é um mendigo esfomeado, não tem como negar. Ela hesita, mas sobe a saia e arranca a blusa. Coloca o dedo indicador nos lábios, desce as mãos sobre a barriga e as sobe vagarosamente até os seios. A aliança, trêmula, reflete a luz que entra pela janela. Então, ouvindo a voz do marido, as lembranças do gozo conjunto, massageia o clitóris até suas carnes amolecerem por inteiro.

De início, assim que Pedro sai do hospital, a família de Sara ajuda como pode. A mãe passa uma semana com ela e o pai envia uma quantia de dinheiro que, mesmo sendo pequena, soma-se ao que Pedro conseguira pelo INSS, diluindo um tanto o vermelho das contas. Mas, no final do terceiro mês, a situação se aspera: alô, oi pai. Tudo bem e o senhor? Ah, aos poucos ele vai se adaptando. E eu também. Pois não, diga. Sério? Não acredito! O que vou fazer sem esse dinheiro?

Isso parece marca de supermercado. Gritou novamente. E ouviu: estou no quarto, amor. Ele acendeu a luz e, de súbito, foi imobilizado pela lingerie vermelha. Cinta-liga, calcinha e sutiã de renda. Eu sou tua, Pedro. Só tua, pra sempre.

Sara sai do hospital, dois dias sem ir para casa, quando o médico a chama. Acho que já é hora desta conversa, desculpe por ir direto ao ponto. A vida de vocês vai mudar drasticamente. Primeiro, todas as dificuldades de locomoção, acesso às coisas da casa, ele vai precisar de ajuda até nas necessidades mais básicas. Isso não desgruda da minha cabeça, doutor. Há outro ponto importante: a questão sexual. Sara murmura qualquer coisa de afirmativo. Os homens com lesão medular não têm ejaculação. Ereção, talvez. Depende do caso, da reação do organismo. A mulher suspira e limpa o nariz com a manga da blusa. Compreendo, doutor. Compreendo. O Altíssimo há de nos ajudar.

Além de observar os procedimentos das enfermeiras nas quatro semanas em que Pedro ficou internado, Sara pesquisou à exaustão sobre cuidados com tetraplégicos pela internet. Ainda no hospital, começou sua segunda vida. Mas foi quando Pedro passou a depender exclusivamente dela, que ela cedeu sua existência de vez. Transformou-se numa devota técnica de enfermagem.

Segunda noite de Pedro em casa, Sara o banha na cama: pano molhado e sabonete neutro. Lava o rosto e o tórax, os braços e as pernas. Ao pênis, dedica-se com mais afinco. Assim que Pedro volta as vistas para a esposa, ela passa a língua na glande. O que pensa que está fazendo? Não pode responder: está com a boca ocupada. Sara, por favor, não. Ela insiste. Por mais que, no campo da conjectura, Sara soubesse dos entraves fisiológicos do marido, espanta-se ao observar a prática confirmando a teoria. Levanta a cabeça, os olhos de Pedro a perfurarem os seus, como se o passado jorrasse por aquelas retinas. A fisionomia da mulher é mais flácida que o membro entre seus dedos. Pede desculpas e sai do quarto. Volta em alguns minutos, dá-se conta que precisa enxugar e vestir o marido.

Logo que amanhece, no dia seguinte, ela leva ao paciente café com leite e pão integral. Bom dia. Dormiu bem, lindo? Sara, quero que você se masturbe. Agora. O quê? Nem sei fazer essas coisas, Pedro. Não é hora de castidade, Sara! Meu estado fodido te deixa fodida também. Precisa falar assim? Amor, o corpo é um mendigo esfomeado, não tem como negar. Ela hesita, mas sobe a saia e arranca a blusa. Coloca o dedo indicador nos lábios, desce as mãos sobre a barriga e as sobe vagarosamente até os seios. A aliança, trêmula, reflete a luz que entra pela janela. Então, ouvindo a voz do marido, as lembranças do gozo conjunto, massageia o clitóris até suas carnes amolecerem por inteiro.

De início, assim que Pedro sai do hospital, a família de Sara ajuda como pode. A mãe passa uma semana com ela e o pai envia uma quantia de dinheiro que, mesmo sendo pequena, soma-se ao que Pedro conseguira pelo INSS, diluindo um tanto o vermelho das contas. Mas, no final do terceiro mês, a situação se aspera: alô, oi pai. Tudo bem e o senhor? Ah, aos poucos ele vai se adaptando. E eu também. Pois não, diga. Sério? Não acredito! O que vou fazer sem esse dinheiro?

Ela não sairia para trabalhar deixando Pedro sozinho. Pensa nas possibilidades, faz e refaz as contas, clama aos céus. Horas depois, escreve numa plaquinha de plástico “Vende-se bolo de pote” e fixa no portão. Comunica ao marido sobre a confeitaria doméstica, explica o motivo. Ah, e posso fazer pequenos trabalhos de costura também. Com o cordão da nova realidade, Sara estrangula os gastos: a internet é cancelada, a lista do supermercado cortada pela metade e, após desculpas veementes ao pastor, o dízimo é diminuído.

O casamento ia bem. Nos seis primeiros meses de cidade nova, casa nova e vida nova, Sara se esforçava para ser e parecer uma esposa, ao mesmo tempo, bíblica e hollywoodiana. Tinha se conformado com a decisão de Pedro de não terem filhos nos anos iniciais de vida conjugal. Sim, amor, precisamos ajeitar as contas antes. Numa noite de domingo, Pedro não foi para o quarto no horário costumeiro. Sara se levantou e perguntou se havia algum problema. Pedro, com a cabeça baixa, não esboçou qualquer som. Os cotovelos sobre a mesa, entres eles três boletos vencidos. Pedro, vou cuidar do filho de uma amiga, na casa dela. Meio período, pra ajudar na renda. Uma parede de silêncio foi erguida entre os dois. Pedro? Não, Sara. Não vai. A gente não precisa disso. Eu sustento você, você toma conta da casa. Assim é natural. É assim que tem que ser.

Aos poucos, aumenta a procura pelos bolos e, contando com os remendos de blusas e barras de calças, as receitas estão a três zeros de alcançar as despesas. Sara entra no quarto. Na mão direita, a lista de encomendas da semana. Deus está atendendo minhas preces. Olha, amor! Pedro, está me escutando? Você está bem? Ela sacode o marido. Pedro? Sacode mais forte. Corre à bolsa e apanha o celular. Seguindo as orientações do atendente, faz respiração boca-a-boca. Em quinze minutos a ambulância está em sua casa.

No corredor que já lhe é familiar, sentada, Sara observa a aproximação do médico, os olhos sob os óculos a derramarem impotência. Seu marido não corre risco de morrer, mas a parada respiratória foi grave. A partir disso, tenho duas notícias. A mulher não se move. É provável que a falta de oxigênio no cérebro deixe arrastada a fala dele. É certo que, em casa, ele precisará de um respirador para o resto da vida. O aparelho e a manutenção não custam pouco.

Sara passa mais sete dias no hospital. A maior parte do tempo, parece entregue a si mesma. Na quinta noite, na poltrona ao lado do leito, um sonho a desperta com estremecimento: está deitada e alimentos escorrem por suas virilhas. Pedro observa o arroz, o macarrão e a carne descendo por suas coxas. Ela se desculpa com o marido e continua a fazer força para parir os mantimentos. Com poucas diferenças, o sonho se repete na sexta noite.

Durante o caminho de volta para casa, no chacoalhar da ambulância, Sara mergulha entre as pedras do futuro. Mergulho profundo, demorado, que afrouxa as cintas da culpa. Com as mãos no colo, espalmadas para cima, e a cabeça pendida, ela atira uma frase muda em direção a Pedro: não há outra saída!

Na tarde seguinte, aperta a campainha um homem largo e baixo, trajando sobretudo preto e óculos escuros. Sara fecha a porta do marido e liga o rádio no volume máximo. Por aqui, senhor. O homem entra rapidamente no quarto ao lado do de Pedro. Pode pendurar as roupas atrás da porta, diz Sara retirando o roupão. Enquanto o homem se movimenta sobre ela, brotam na mente as promessas repetidas ao pastor no dia do casamento e, com os olhos molhados, Sara se põe a orar

Conto pertencente ao livro Amortalha (Patuá, 2017)

 

 

Matheus Arcaro nasceu em 1984 em Ribeirão Preto. É mestrando em filosofia contemporânea pela UNICAMP. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e em Comunicação Social. É professor, artista plástico e escritor, autor do romance O lado imóvel do tempo (Patuá, 2016) e dos livros de contos Violeta velha e outras flores (Patuá, 2014) e Amortalha (Patuá, 2017).

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