“montagem e desmontagem de minha existência” – Três poemas de Zainne Lima da Silva

 

 

Pelo chão você não pode ficar ou Estou enxergando agora você

                                     a Stela do Patrocínio

 

eu preciso de resolver, você sabe?
este homem-touro, com seus músculos de macho
me botou numa sala de espera
sem televisão tubo no canal 04-1
sem revista de fofoca, sem gibi, sem caça-palavra
me botou numa sala de espera
eu, cadeira de plástico, cara na parede
parede branca demais, limpa de mais
sem fungo, sem mofo, nada vivo
me botou numa sala de espera
sem papel, sem caneta, sem grafite
e eu, em minha vontade irressarcível de escrever
fiquei montando e desmontando verso
para não perdê-los, decorando-os
como a um trava língua se decora
como a uma oração de um Deus inexistente
como a um hino nacional em tempos de guerra
de cor e salteado, como as veias na mão de uma avó
até esmorecer, depois da morte da avó
sentada numa cadeira de plástico
num cômodo menor que banheiro de serviço
sem janela, sem ventilação
uma parede branca de cegar
ele me botou numa sala de espera
trancou a porta do cômodo branco, limpo, 40×70
não era um cômodo, era uma jaula
nunca me disse que horas voltava
se voltaria
minha cara na parede decorando verso
mortes de avós do lado de fora (imaginava)
montagem e desmontagem de minha existência
tenho certeza que enlouqueci.

 

 

***

minha casa tem quadrados de cerâmica soltos do chão
o tempo de uso deteriora o espaço

enquanto alguém dorme, meio da noite
tento pisar nos quadrados firmes
silente como um boi de cara preta

erro os quadrados
acabo fazendo barulho
acordo até a cidade vizinha

sou escandalosamente real.

 

 

***

N. arrancou minha mão de escrever.
doeu, foi deslumbrante.
gosto quando a literatura me sangra pelos olhos (lágrimas de cristo).

quero compor um poema.
sou destra.
N. arrancou minha mão de escrever.
tento com a esquerda,
não dá tempo e o poema foge.

a vontade de escrever
é dor de membro fantasma.

 

 

Zainne Lima da Silva é prosadora e poeta. Bacharela em Letras pela FFLCH-USP. Autora de Pequenas ficções de memória (2018), da Editora Patuá. Possui textos nas publicações Jovem Afro e Cadernos Negros (Quilombhoje); Raízes: vinte escritoras negras vol. 1 (Ed. Venas Abiertas); As coisas que as mulheres escrevem (Ed. Desdêmona); Nem uma a menos (Editora Versejar – no prelo); poeta convidada da primeira edição do Projeto Sutura.

Please follow and like us:
Be the first to comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial