Três poemas inéditos de Pedro Gonzaga

 

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de uma lenda de varazze

reza o livro sagrado que um jovem
a modo de ter sua fé testada —
e quão comoventes eram os antigos
no que despendiam de energia para
perder a quem tão facilmente se perde —
desta vez não por tortura mas por
pecaminosas delícias seria provado

ataram-no a uma perfumosa cama
pelas mãos e pelos pés por correias verdes
feitas da mesma matéria das árvores
sob um ameno clima a tocar-lhe a pele
e então uma moça surge em pura polpa
e antes dos dedos o percute com o cheiro
das primeiras frutas há tanto perdidas

e o corpo do jovem desconhece a razão
e viola as sanções dos santos padres
as condenações ao contato quente contra
tudo que se dobra macio e escuro na carne
os caminhos baixos do sangue que a moça
despudorada já conhece entre os dedos

assim a alma sucumbe a suas vertigens
nos lábios dela por certo habitam demônios
nos cabelos os ferrões de mil abelhas
ocultas no mel de um ouro turvo e venenoso
e o jovem recorda no último momento
a salvação pela dor pois mesmo preso
sempre pode nosso corpo o martírio
e nota que a própria língua parece um peixe
mais bem uma coisa viva feito cobra na boca
e descobre o poder de tesoura dos dentes
e se embriaga no progressivo gosto de ferro rubro
e crê que morder mais forte é dominar as veias
e parte um pedaço de si abraçado à imagem
do cristo sagrado partindo o pão
até a ponta da carne estar solta para ser cuspida
feito um êxtase do corpo expelido no rosto da moça
sem saber que sua vitória mística se parece mais
com a da alma remida ao fim de cada orgasmo

 

 

caixa azul

o motorista do aplicativo
oferece balas e água
e depois de um silêncio
pergunta se já pensei no destino
dos meus restos mortais
e diz que o túmulo da mãe
tem flores de plásticos
úteis porque ninguém o visita
conta que o cunhado
depois da cremação
passou de 90kg
a um punhado de pó

e então o amigo vê —
puseram ele numa caixa azul
com um cravo em relevo na tampa
ele que era colorado doente

e se tem algum vida depois dessa
como ficar fechado
dentro da cor do rival

ontem às três da manhã
peguei a caixa e invadi
o pátio do estádio
fui até o pé da estátua
lancei tudo no canteiro
diante do maior jogador do clube
mesmo que de longe
ele só pareça uma criança
segurando uma taça

 

 

as paredes do quarto

os anos não escurecem as coisas
os anos não espalham mofo
os anos são como cloro
esterilizam tudo
amam no branco apenas
o que o branco tem de cal

lavam sanitariamente
as paredes do quarto
os corpos subjugados
e a experiência da tarde
e as ruas sem fortuna
ao olhar condescendente
das persianas encardidas

aos anos agrada o frio
das águas matinais
que ninguém bebe
sem ver apagar
todo e qualquer
segundo incêndio

 

 

 

Pedro Gonzaga é professor, tradutor e escritor. Doutor em literatura pela UFRGS, com oito livros publicados, entre poesia e prosa, desenvolve há anos trabalhos com turmas de escrita criativa, voltadas para o público adulto. Atualmente é cronista do jornal Zero Hora e do Estado de São Paulo. É natural de Porto Alegre, cidade onde vive. Seu mais recente livro é em outros tantos quartos da terra (poesia), de 2017, pela Editora Ardotempo.

 

  • Imagem de autoria desconhecida.
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This Article Has 1 Comment
  1. Alfredo Aquino Reply

    Bravo, poeta Pedro !!! Plenos poemas, intensos de vida e de Arte.

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