“as luzes da madrugada lucilando atrás da névoa” – 4 poemas de Narlan Matos

 

 

huckleberry finn

depois trouxeram uma edição de Pinnochio
gostei apenas de seu poster na parede do quarto
depois trouxeram Alice no País das Maravilhas
depois trouxeram as Aventuras de Gulliver
trouxeram outros livros que não me lembro
não adiantou de nada…
eu e os livros nunca falávamos a mesma língua

as tardes porém tinham uma estranha beleza
a infância era uma terra de encantamentos
fazia tanto sol lá fora faziam tantos belos dias
e eu capitão da areia com meus comparsas
de pés descalços e sujos pelos campos afora
estávamos ocupados demais absortos demais
vivendo as aventuras de Huckleberry Finn
sem sabermos!

 

 

meditação em Frankfurt

hoje quando despertei ainda era
madrugada – alta madrugada
abri os olhos de súbito e notei um outro escuro
testemunhei o peso de meu corpo contra a cama
é estranho despertar sem haver uma manhã no céu
levantei. Abri a clarabóia que dava para
a cidade ainda adormecida
sirenes longínquas. Tímidas. Pios de aves noturnas
as luzes da madrugada lucilando atrás da névoa
desde o sótão que fica no telhado, no quinto andar
deste edifício velho e desgastado algo me alcançou
um sentimento profundo e terno se me abateu
pela clarabóia fiquei observando a
cidade e pensando na vida
nas coisas perdidas
um irremediável olor de mofo impregnando tudo
nenhuma lua. Como companhia
apenas uma xícara de chá frio
o frio outonal nas ruas
a morte, de fato existe. As pessoas
se vão. Os tempos mudam
trocam-se as fechaduras das portas, as estrelas caem
mais tarde os sinos na catedral ao lado dobrarão pontuais
e os homens se dobrarão ao seu insustentável peso

Frankfurt, Alemanha, Outubro de 2013.

 

 

o balanço no pátio

nesta tarde sem tarde
estou sentado sem mim
no balanço do tempo
no pátio etéreo de minha casa
aguardando pelos milagres
que só podem nascer das mãos dos homens

 

 

acalanto para os homens

uma estranha esperança me faz companhia
a noite em meio
um silêncio profundo pousado sobre
o mundo sobre os homens
ouço os homens que dormem profundamente
escuto suas vozes caladas
vejo seus sonhos verdes adormecidos
quando adormecidos os homens são deuses perfeitos
se entendem e se amam incomensuravelmente
à noite os homens sonham em suas camas feitas de estrelas
todavia despertam para ruas de ferro e estanho
se amanhã de manhã eles fossem como são agora
o mundo seria um outono de rara beleza

os homens estão dormindo
e uma profunda esperança me faz companhia
à noite eles são crianças de novo e dançam cirandas
há comunhão em suas almas adormecidas
assim não vou gritar, não vou levantar minha voz
não quero acordá-los de seu sono profundo
porque os homens são muito mais possíveis
e reais quando estão sonhando.

Dublín, Irlanda.

 

 

Please follow and like us:
This Article Has 1 Comment
  1. Roberto Monteiro Reply

    Se algum dia, publicarem algum poema meu, assinarei…:
    Aqui e agora, um ano qualquer…

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial