“Palmeiras de ferro” – conto de José Petrola

 

 

Observo a fila à minha frente. Ao redor, as pilastras amarelas do aeroporto, que, no alto, se dividem em ramos, como os de palmeiras, e se juntam em outros formando arcos. Os olhos, cansados de uma noite inteira viajando, mal conseguem ficar abertos. Tento identificar as línguas que escuto na fila. Japoneses calados, olhando as placas para se certificar de que estão no lugar certo. Jovens americanos barulhentos e eufóricos, com mochilões nas costas. Brasileiros desorientados, fora das filas, sem conseguirem entender as placas. Faço força para não cair de cansaço, na fila que se arrasta. Tenho preguiça de viagens, horror a filas, pavor de alfândegas. Olho para o alto, as pilastras do aeroporto, que mais parece um delírio. Palmeiras de ferro no teto sextavado, que parece uma pedra lapidada ou as cúpulas de uma catedral. Pilares, barreiras. O guarda me pergunta para que cidade vou. Quantos dias vai ficar? Trouxe dinheiro? Conhece alguém no país, algum amigo? Veio procurar trabalho? Respiro, indeciso entre dizer não a tudo e não dizer nada. Tudo parece tão irreal que apenas aceno, resmungando como se não entendesse aquele idioma. Sim, fico só uma semana. Tenho mil dólares. Não, não conheço ninguém, não estou desempregado. Sim, pode revistar. Olhares ameaçadores, minutos de silêncio pesado, o carimbo no passaporte, a fila para uma escadaria cheia de japoneses calados, americanos eufóricos e brasileiros perdidos. Estava cansado a ponto de não lembrar nem mesmo o nome do país. Uma terra estrangeira, qualquer. Um aeroporto feito de galhos de palmeira, ou de arcos de catedrais, uma estação de metrô que vai dar em outro terminal de palmeiras psicodélicas, equilibrando-se umas nas outras em ângulos estranhos, como arcos de uma igreja gótica depois de um terremoto. Sigo em frente.

Houve, muito tempo atrás, um país que eu sabia o nome. Lembro-me, já sem certeza se realidade ou sonho, que era um país tropical com muitas praias e montanhas. Fui funcionário público concursado, com todos os benefícios. Durante a semana, eu trabalhava para o governo. Aos sábados, escalava as montanhas e, aos domingos, nadava nas praias. O presidente era querido por todos, e pensávamos que nos tornaríamos uma grande potência. Tínhamos ouro, petróleo e todas as riquezas que se pudesse imaginar. Havia empregos para muitos no governo, a salários tentadores. Não é a primeira vez que atravesso este aeroporto interminável de palmeiras psicodélicas, de cujo nome não me lembro, num país que já foi meu destino de férias, cujo nome não lembro. Mas havia o Partido do nosso querido presidente. E havia que sustentar os aliados do Partido. Contratos milionários, sem nenhuma contrapartida. O Partido me tirou de minha profissão, mas não do cargo. Eu poderia continuar com o meu salário, e podendo viajar de férias para o aeroporto das palmeiras psicodélicas, no país de cujo nome não me lembro. A única regra era não poder trabalhar na minha profissão, não exercer a vaga para a qual fui selecionado no concurso, e não tentar entender do que se tratava meu trabalho. Minha nova função era garantir o dinheiro para todos os contratos que passassem pela minha mão, fingindo que os analisava, sem nenhuma contrapartida. Apenas obedecer, e nunca criticar o Partido.

Todos viviam bem no país, as praias sempre quentes e lotadas. Nas eleições, a oposição sempre perdia, por falta de descontentes. Mas eu, por dentro de mim, fui empedrando aos poucos. Comecei a criar gastura. O calor me dava náuseas. Parei de ir à praia. Ainda suportava as montanhas, em busca do frio no alto. Sempre que havia tempo, eu viajava, para o mais longe possível. O mais distante e mais frio que fosse. Comecei a subir montanhas de outros países. Criei gosto pelas geleiras e morenas, mais desafiantes que os costões de granito da minha cidade. Morenas no outro sentido, as mulheres de meu país, pareciam cada vez menos interessantes que as loiras do estrangeiro. Por mim, se pudesse, passaria a vida toda viajando.

Às vezes eu acordava no meio da noite, sem conseguir dormir. Quando dormia, meu sono era sem sonhos. Falavam de uma doença que se espalhava pelo meu país. De repente, as pessoas perdiam os sonhos, depois perdiam o sono. A moléstia se alastrava pelas ruas, escritórios, escolas, universidades, campos de futebol. Ninguém estava livre. De um dia para o outro, funcionários do governo, advogados, médicos, jornalistas, professores, estudantes, paravam de dormir e iam para as ruas, protestar contra o Partido. Queriam ver o presidente deposto e preso. Mas também não apoiavam a oposição.

Minhas semanas de trabalho eram erráticas. Algumas vezes, maldormido, eu confundia segundas com domingos, e nem saía de casa. Outras, saía do trabalho mais cedo para protestar na praça. Ainda havia a promessa, ano após ano, de que, no seguinte, se eu garantisse dinheiro para todos os contratos estranhos, e dependendo de complexas negociações com o meu chefe, de acordo com a estação do ano, as fases da lua e os alinhamentos planetários, eu poderia me inscrever numa loteria para talvez poder concorrer a uma vaga para minha profissão, aquela que era de meu direito. Mas o ano seguinte nunca chegava.

Um novo candidato aparecia nas eleições: o Anti-Partido. Ninguém sabia seu nome. Mas ele dizia que ia consertar o país. Prometia que, se eleito, poria o presidente do Partido na cadeia, e nos livraria de todos os inimigos do povo que atrapalhavam nosso desenvolvimento, nesta ordem: os políticos do Partido, os funcionários do governo e os alpinistas. Não sei por que os alpinistas, num país onde havia tão poucos. Mas o candidato do Anti-Partido garantia que os alpinistas eram extremamente perigosos e precisavam ser contidos. Um obscuro deputado de um estado no Norte chegou a propor um projeto de lei restringindo a venda e o porte de cordas e mosquetões. Só não foi aprovado por pressão do setor de construção civil.

Não aconteceu isto comigo, mas muitas pessoas que pegavam a doença da insônia, depois de alguns dias, começavam a delirar. Um doente perguntava a um sadio onde pegar o bonde, e, ao ouvir a resposta, correta, de que não havia bonde na cidade, gritava de volta que o outro tinha sofrido lavagem cerebral do Partido. Ao passarem perto de montanhas, os insones sempre olhavam apreensivos para o alto, preocupados com a possibilidade de serem alvejados por tiros de algum alpinista perigoso e armado. Alguns iam até os morros para jogar óleo nas pedras, na esperança de impedir que alguém as escalasse. Os mais radicais, em vez de óleo, usavam cerol. Universitários, em tom de provocação, desfilavam pelas ruas carregando longas cordas, apenas para procurar briga.

O Anti-Partido ganhou as eleições, graças ao voto de milhões de insones, mas não demitiu os funcionários do governo e não tomou nenhuma medida contra os alpinistas. Mas as coisas estavam estranhas. Eu continuava proibido de exercer a minha profissão. Não haveria vagas novas para ninguém no governo, nem possibilidade de transferências. Os estranhos contratos permaneciam, mudava apenas quem recebia o dinheiro. Cada vez mais eu me tornava intolerante ao calor. Evitava as praias, e as montanhas estavam perigosas. Nunca se sabia quando um insone poderia aparecer armado com uma besta para atirar flechas nos escaladores, sem que a polícia tomasse qualquer atitude.

Como eu continuava tendo insônia, mas não me tornei apoiador do Anti-Partido, nem conseguia ver o menor sentido nas promessas dele, concluí que minha falta de sono não era causada pela mesma doença misteriosa dos anti-partidistas. Eu ainda pensava que minha cidade não tinha bonde, enquanto os anti-partidistas achavam que existia um complô do Partido para ocultar a existência do bonde. E eu não conseguia entender qual o problema com os alpinistas. Apesar de termos muitas montanhas, no país inteiro nunca houve mais de cem alpinistas, eu mesmo tendo sido um deles por muito tempo.

Por um tempo, achei que bastaria me distrair. Cachaça, por enquanto, ainda não estava proibida. Mas depois eu quis procurar algo com mais emoção. Algo que fizesse realmente eu me esquecer de que segunda voltaria ao trabalho no governo. Consegui, por meios que não quero revelar, o chá de uma planta que, diziam, me faria voltar a ter sonhos. Tomei o chá e comecei a sonhar antes mesmo de dormir. Estava num longo corredor formado por palmeiras amarelas de metal, que se juntavam umas às outras como se fossem pilastras de uma catedral gótica. A visão foi assustadora, mas ao mesmo tempo a ideia de que havia um outro lugar para onde ir me consolava. Procurei outras drogas, legais e ilegais. Experimentei cogumelos de vários tipos. E, sempre que os tomava, me apareciam as palmeiras amarelas. Alguém me falou de uma planta mais forte, que, tomada uma vez, faria a pessoa viajar por muitos dias, talvez para sempre. Esta, cheguei a comprar uma pequena quantidade, mas não tive coragem de provar. Continuei as experimentações com todos os demais tipos de plantas e fungos alucinógenos que se podia encontrar no meu antigo país. Queria, por um momento, esquecer tudo, até o meu próprio nome. Os sonhos voltavam por um tempo, sempre na forma de palmeiras coloridas. Mas, depois de algum tempo, a insônia vencia novamente.

Uma insônia estranha, que fazia as coisas pouco a pouco perderem o nome e o peso. Um dia, acordei às seis da manhã e caminhei pela cidade me sentindo como se flutuasse. Na padaria, vi que a televisão passava uma reportagem sobre o quanto os funcionários do governo prejudicavam os cidadãos, depois entrevista com um médico que alertava para os efeitos da nova doença do sono, que fazia as pessoas dormirem muito e terem sonhos. Alguns doentes chegavam a acreditar que poderiam ter direito a uma profissão e uma carreira, mesmo sem serem membros do Anti-Partido: estes seriam os casos mais graves, para imediata internação. Ao final do noticiário, uma psicóloga com expressão entre histérica e apavorada alertava aos pais sobre possíveis sinais de que o filho estaria envolvido com alpinismo. O programa de TV terminou com a ligação de um pai desesperado que acabara de encontrar uma cadeirinha e um par de sapatilhas de escalada no quarto do filho adolescente.

Então, agora os doentes seriam os não-insones? Perguntei a uma senhora na padaria, tentando puxar assunto. Ela começou a gritar comigo, horrorizada, dizendo que eu já estou contaminado e deveria manter distância. Saí correndo, antes que a mulher criasse uma confusão. Aquele dia foi todo estranho, de angústia, como se de repente o mundo tivesse perdido o chão. Só no caminho de ida ao trabalho, três pessoas me perguntaram sobre o caminho do bonde. No trabalho, todos estavam apavorados com uma declaração do presidente, de que demitiria todos os funcionários do governo. Ao meio-dia, porém, o presidente desmentiu, dizendo que ninguém seria demitido e os jornais mentiram. Às seis da tarde, quando voltei para casa, vi na TV que o presidente fez nova declaração, garantindo que os funcionários do governo seriam demitidos, mas só os preguiçosos. O repórter não teve coragem de perguntar como se mede preguiça de funcionário.

No fundo do quarto de despejo, eu mantinha um armário trancado, com todos os itens proibidos. Cordas, cadeirinha, mosquetões, pó de magnésio, sapatilhas — hoje sou quase um terrorista. Um envelope com flores ou folhas secas da tal planta perigosa, que fazia não voltar. O meu passaporte. Dólares. Era hora de viajar para nunca mais. Esquecer o meu nome, o meu passado, o país que nunca me quis. Uma vez esquecida a minha profissão, eu não sentiria falta dela, nem teria de continuar repassando o dinheiro daqueles contratos. Uma vez esquecido tudo, não precisaria do governo, nem do país. Viajar para sempre, sem me lembrar nem mesmo do que peguei na gaveta e o que deixei para trás.

O aeroporto não acaba nunca. Passada a imigração, palmeiras psicodélicas, agora vermelhas. Um metrô. Palmeiras roxas, depois verdes. Intermináveis filas de lojas de badulaques importados. Não me lembro se tomei a planta e não fez efeito, ou se simplesmente a joguei fora. Se a alfândega não me parou, é porque não a trouxe comigo. Meu país não existe mais. Atravesso a cidade de altos prédios envidraçados até uma estação ferroviária que parece uma estufa com palmeiras de jardim plantadas entre as plataformas. O trem, no país de cujo nome não me lembro, atravessa planaltos cor de areia até chegar numa cidade de praias pedregosas sem areia nenhuma. Quanto mais longe viajo, menos coisas me lembro do antigo país. Tomo um ônibus que sai da praia e passa por imensos olivais até chegar ao pé de altos picos nevados. Depois tomarei outros ônibus, trens, bondes, o que for preciso. Viajarei até não me recordar mais de nada da minha vida passada. Menti para a imigração, venho para não voltar. Não sei se esta viagem terá fim: tudo o que quero é encontrar uma casa, uma profissão e um país com nome.

 

 

José Petrola, jornalista e escritor , nasceu em São Paulo em 1988. Formado em Jornalismo e mestre em Comunicação pela USP, começou a carreira como trainee da Folha de s. Paulo em 2011. Atualmente mora no Rio de Janeiro e trabalha na Petrobras na área de responsabilidade social. Publicou contos em diversas antologias (Revista Saúva, Sinistra  Um, Prosa e Verso). Estreia como autor com O Beco do Rato (ed. Jaguatirica, 2018)
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