FERNANDO ANDRADE
jornalista e crítico literário
Quando Italo Calvino escreveu seu livro inclassificável Cidades Invisíveis, não era apenas narrar relatos de viagens de Marco Polo ao império mongol. A memória sabe-se bem é simbólica, eruptiva, quando a fonte que dela se origina-emana vem de um relato de viagem que se diz fidedigno. Na sua viagem ao oriente muito se fez em mimetizar sobre o que o mercador tinha de projeções à frente: seus desejos, medos, aspirações, aquilo que está escamoteado por chamar-se de vida.
Quando conta pelo viés fabular, todas as cidades por onde andou, seu discurso não se perfaz pelo vaticínio da credulidade factual. Toda cidade tem suas máscaras. É o fascínio de um arquétipo escondido pela razão da linguagem. Assim como todo nome carrega uma ambiguidade sobre identidades que vêm narrativamente de muito tempo escorrido pelos dedos da ampulheta. Portanto as mulheres que Marco Polo narra, e sua referências às cidades, ou vice-versa, são na verdade signos refratários à um dupla hélice de uma potência.
Cada signo potencializa um outro que a cidade-nome carrega. Para um projeto como Desterro da poeta Camila Assad, editora macondo, referenda intertextualidade com o livro de Calvino, traz à sua obra uma relação cambiante, como se Umberto Eco estivesse nos falando da obra aberta, onde semioticamente a ficção deriva sempre perante outra. A literatura seria uma obra vazada de conexões simbólicas, de arquétipos comuns que até podem chegar a questão de certo inconsciente coletivo, onde pairam as ideias, que o escritor se apossa para seu manuseio linguagem.
Camila descontextualiza um único gênero literário em seu livro. De forma quase mutante e híbrida, tece o tecido textual no limite entre a prosa ensaística e poética (auto)biográfica. O domínio da linguagem da poeta entre trânsitos narrativos é tão impressionante, que ela conecta outras gêneses literárias como ironia, citações, mapeamento de uma cidade como São Paulo, expondo bios gráficas entre postulados ficcionais e eventos verossímeis do lugar.
A cidade quando-onde percurso; de humanidades latentes, o feminismo dialogando nesta urbe polissêmica, onde a autora desfaz a imagem poética que a mulher seria uma flâneuse sem a latência de falar sobre identidade de gênero, discutir e falar da violência contra a mulher; a dupla jornada de trabalho. Camila territorializa todos estes discursos de uma literatura apenas idealizada sobre aspectos estrangeiros, alinhavando a cidade como um palimpsestos onde o texto está sempre à ser reconfigurado pela sombra ou imagem do pergaminho anterior.
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