I – Gênese
Podemos imaginar o primeiro balbuciar do homem na aurora da humanidade. E esse balbuciar foi um dos divisores entre nós e os outros animais. Nascidos do Verbo para gerar através do Verbo. No entanto, nos dias atuais, a nossa linguagem oral (e logo, a escrita) tornou-se tão empobrecida que já não sabemos se grunhimos, balimos ou rosnamos ao tentarmos nos comunicar com os da nossa própria espécie. Há um retrocesso.
Em um período de extrema vulgaridade nem a decadência escapa do clichê. De qualquer forma, os conceitos, as terminologias, as ideias e a própria palavra estão vazias em sua essência, seja pelo esvaziamento, ou diluição, de seus significados, ou pela própria incapacidade das pessoas interpretarem os símbolos que a cercam. Não há decadência em um mundo decadente.
Se em algum momento tínhamos uma linguagem perfeita, angélica por assim dizer, ela foi perdida, ou desligada, no momento em que o ser humano decaiu em sua insanidade. Creio que o resquício dessa linguagem original possa ser encontrado na “Linguagem de Mistério”. O Poeta Arthur Rimbaud (1854-1891) já bradava “…o tempo de uma linguagem universal virá!” – E essa língua será “de alma para alma”. Não mais de ego para ego. Aqui, devemos entender “alma” como a centelha divina que habita cada ser; a única parte imaculada que nos liga a Divindade; e aqui podemos entender ”Divindade” segundo (ou mesmo além de) nossas crenças, não se limitando às religiões ou a mera espiritualidade. Proponho nos aproximarmos do conceito de William Blake de que “Tudo o que vive é sagrado”.
Temos a metáfora por trás da história da Torre de Babel, quando Deus intervém na construção da Torre que os homens intentavam, em sua arrogância, para alcançar a morada do Deus-Criador e desafiá-lo, na tentativa de centralizar o poder entre os homens desligados de Deus. Conta-se que foi nesse tempo que os homens se voltaram para a idolatria e para a feitiçaria. Isso teria acontecido em algum momento depois do Dilúvio. No capítulo 11 de Gênesis, versículo 07 está escrito – “…desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros” – aplicando como “castigo”, ou impondo um “limite” na ganância dos homens, a multiplicidade de línguas. Resultado: ninguém mais conseguiu se entender por causa da barreira que foi imposta pelas próprias palavras.
Porém, a barreira vai muito além da multiplicidade; ela está no cerne de nossa incapacidade de ouvir o outro. É quando o ego se sobressai ainda mais pungente e sua única lei torna-se a selvageria do “olho por olho e dente por dente”. A impossibilidade está primeiramente enraizada no diálogo entre o Homem e Deus (Sua Origem), diálogo esse que se tornaria cada vez mais difícil. Com a destruição da Torre temos a impossibilidade do Homem entender-se com o próprio Homem.
Das ruínas da Torre, seus escombros tornaram-se as novas línguas. A Linguagem oral é o veneno oculto no Homem.
II – Os Pedaços que Ficaram Pelo Caminho
Arthur Schopenhauer em “A Arte da Escrita” escreveu sobre a importância das línguas antigas, entre elas, o sânscrito, o grego e o latim. E na deficiência das línguas modernas. Podemos imaginar que as línguas modernas são os escombros das línguas matrizes que nós conhecemos.
O inglês como língua universal só pode ser piada. Mas funciona enquanto linguagem material e densa. É um idioma altamente comercial, balizada no medo, assim como os pilares da nossa atual civilização; a política, a religião, a economia.
Diferente da idéia de George Orwell no livro 1984, ao simplificar o inglês; excluindo palavras na tentativa de eliminar seus conceitos e ações. James Joyce em sua obra máxima Finnegans Wake nos leva as últimas conseqüências experimentais da linguagem, forjando uma língua que tem como base vocabular o inglês, através de uma mistura de outras setenta e tantas línguas; entre elas o sânscrito, latim, italiano, francês, português, alemão…a lista é longa. Criando neologismos insuspeitos, redefinindo conceitos, pluralizando significados. No entanto todo esse retalho lingüístico não bastaria para recompor uma linguagem decaída; como se juntasse os pedacinhos de cacos de um vaso chinês. E mesmo na feitura de uma nova linguagem, falada e escrita, através do entulho dos idiomas, experimentaríamos ainda os efeitos do veneno da nossa corrupção.
No livro A Mulher Vestida de Sol, escrevi que: Há um nome secreto para todas as coisas no Universo. Nossa linguagem terrena tornou-se assaz morna e corrupta. Chegará o dia em que a humanidade deixará essa velha roupa maltrapilha para falar de Alma para Alma. Quando chegar esse dia, felizes daqueles que alcançarem esse estágio evolutivo, pois o resto da humanidade continuará perdida em sua vulgar tagarelice. Confusa em sua cacofonia caótica de mal-entendidos. E quando a Poesia (Linguagem de Mistérios) estiver ausente deste mundo, aí, sim, será o verdadeiro Apocalipse.
A poeta xamã Maria Sabina dizia curar com a linguagem. Usar a palavra como instrumento de cura é mais comum do que se possa imaginar; o que poderíamos dizer das orações, preces, dos mantras? Bendizer ou maldizer se faz com palavras, e hoje, mais do que nunca, não podemos negar o poder das palavras, tão reverenciado por inúmeras culturas antigas. Hoje qualquer curso básico de PNL pode nos dar uma ideia.
Todavia, é preciso cuidado para não confundirmos o “curar” com “manipular” com a linguagem; em um mundo em que bem e mal se mesclam nos enganamos facilmente.
Enquanto ainda não alcançamos esse alvorecer, temos que nos deparar com o lodo de nossas incoerências. Para muitos intelectuais a língua é “viva”, se modifica com o tempo, os costumes de cada época. Em pleno acordo com o romancista William S. Burroughs, digo que a linguagem é um vírus (do latim vírus, significando fluido venenoso) e não temos poder sobre ela; aliás, mal temos controle sobre a língua dentro de nossa boca.
Hoje balbuciamos com o auxílio tecnológico como verdadeiros “macacos aperfeiçoados”. O brasileiro, em sua grande maioria, não lê, quando faz chega a ser deplorável. Pior, não consegue interpretar ou escrever um simples texto. Pior ainda, acha graça na própria desgraça. Temos as pérolas do ENEM, temos os tesouros das Redes Sociais, o nosso histórico no sistema educacional e os fatos do dia a dia. Mas o fenômeno é mundial; trata-se de um projeto do governo por trás do governo para emburrecer a população, nivelando-a por baixo.
Hoje é “modinha” fazer protesto, das redes sociais às ruas. É “engajado” falar de política, criticar e levantar bandeiras. Mas como restaurar um País, se mal dominamos a nossa própria língua? Como discutir política, no sentido real da palavra, com seriedade e maturidade, se mal conseguimos interpretar os signos à nossa volta?
As causas são inúmeras e complexas.
Estamos ocupados demais para nos entendermos, ocupados com a manutenção egoísta do nosso umbigo. Preocupados demais em ostentar o que temos e o que não temos. A rapidez da comunicação não nos dá a chance para a reflexão.
As indústrias de comunicação deveriam investir todo o dinheiro em pesquisas e aperfeiçoamento para a comunicação extra-sensorial. Pensando bem, talvez não. Informação sem conteúdo ou o excesso de informação é tão ou mais danoso quanto sua escassez. Perdemos o fio de Ariadne. No labirinto informe de nossa linguagem somos devorados pela nossa própria ignorância. E se decaímos com a Torre de nossa Linguagem. O jeito é cantar pra subir.
III – Um Possível Despertar
Mas ainda que houvesse uma única língua matriz, mãe de todas as outras, ainda sim ela já teria nascido corrompida pela doença da materialidade mundana, de vibração muito densa. A linguagem perfeita quedou com a Queda do Homem Arquetípico, em um mundo de dualidade e pares de opostos. Em um Mundo sublunar. Uma das alternativas é buscar a Linguagem de Mistérios através do Nous (que chamaremos aqui de Mente Iluminada, ou Intelecto da Alma). Outra possível alternativa seria herdar uma nova linguagem, de origem extraterrestre; a idéia, em certa medida, foi retratada de forma brilhante no filme “A Chegada” (The Arrival), de 2016, dirigido por Denis Villenueve. No filme, alienígenas transmitem uma linguagem escrita em forma de círculos, com pequenas variações no risco circular, símbolos capazes de guardar conceitos profundos.
Sou tentado a imaginar uma nova oralidade não em forma de grunhidos e ruídos guturais, como o dos alienígenas no filme, mas como mantras circulares de vibrações sutis. Temos o mantra Om (ou Aum) que, não duvido, pode ser um resquício de uma oralidade pautada na circularidade, infinita e perfeita, e por isso mais pura. Ou ainda, uma oralidade espiralada, cuja estrutura em espiral correspondesse com o DNA, com a estrutura das galáxias e com a própria estrutura que sustenta as forças gravitacionais.
Ao dominar tal linguagem teríamos como consequência uma expansão de Consciência ainda não experimentada pela humanidade. Creio que uma linguagem com tal estrutura só poderá ser alcançada por volta do fim da Era de Capricórnio e do início da Era de Sagitário. Resta à Era de Aquário a desconstrução, a ascensão e queda da nossa Civilização ou, melhor dizendo, da nossa Civirização
Mateus Cunha: Teve Simioto na infância. Publica livros de Poesia. É a favor do caos criativo. Detesta propagandas de cerveja. Não vê esperanças na política e nos demais centros de poder. Não tem ideologias. Fã do John Coltrane, Lou Reed, Cartola e São Francisco de Assis. Apaixonado por música, literatura, cinema & gatos. Bicho do mato mora na mata. Mora em qualquer lugar.
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