ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor e poeta Leonardo Almeida Filho

LEONARDO ALMEIDA FOTO - ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor e poeta Leonardo Almeida Filho

 

 

FERNANDO Há uma interessante construção no seu romance sobre os sentimentos antagônicos ou diria a afetação (deixar se afetar e afetar o outro) ambivalente tanto em aspectos sexuais quanto sociais, com relação à questões de gêneros. Ódio e amor parecem andar juntos no seu narrador e nos personagens literários que você criou dentro da narrativa do livro dentro livro. Como foi mexer com esta afecções tão pulsionais?

LEONARDO – Em primeiro lugar é preciso que se diga que “Nessa boca que te beija” é todo ele um tecido narrativo costurado pela paranoia e obsessão. Reside na ideia muito particular de que a literatura é, por princípio, um tipo sofisticado e controlado de paranoia. O escritor é uma espécie de paranoico na medida em que constrói universos que só existem em sua reflexão e trabalho criativo. Demiurgo por excelência, o escritor é o sujeito que, não satisfeito com a realidade imediata, recria esse mundo, constrói universos diegéticos muito pessoais, inventa, mata, prende, arrebenta, beija, acaricia, enfim, erige na linguagem uma possibilidade de vida que, de alguma maneira, lhe gratifica e o estimula a continuar criando. Especificamente no caso do meu protagonista, o escritor pequeno burguês Luis, essa paranoia oscila entre o amor extremo e o ódio absoluto. Enquanto constrói um sujeito amado que lhe satisfaz, o afeto positivo domina sua avaliação do outro. Num movimento bipolar, num outro momento, acredita na inversão do afeto e deixa-se invadir pelo ódio. Eros e Tanatos, pulsões opostas e em equilíbrio, disputam a alma do escritor fracassado. Essas idas e vindas, num crescendo, determinam o fecho da história.

 

FERNANDO – Este trabalho de escavar a ficção através dela mesma; suas intertextualidades, ou citando (citações) formas de leitura que fazem o autor, ou arquitetando a trama de forma meta-literária, com seus palimpsestos, suas camadas de pergaminho, uma leitura sobre a outra. O que esta arquitetura narrativa e literária te dinamizou ou não na feitura do romance?

LEONARDO – Quando decidi escrever o romance, ainda em 1994, tinha como projeto uma história que fosse, ela própria, uma homenagem à literatura. Por esse motivo, personagens, datas, lugares, todos têm um pé na história literária, seja por referenciarem um determinado autor ou personagem real, concreto, ou por anexarem ao tecido narrativo ficcional uma referência (uma espécie de interface) a universos historiográficos reais. Parágrafos inteiros são sampleados, reescritos a partir de originais. Exemplo maior é a presença de alguns fragmentos de Leonardo da Vinci sobre o problema da representação. Quando Luís se vê às voltas com o dilema: narrar e descrever, a inserção do clássico renascentista, antes de anacrônica, provoca um novo significado ao embate do escritor contemporâneo. Algumas dessas referências
(intertextualidades) são muito evidentes (como a cena euripidiana d’As bacantes em pleno Carnaval carioca), outras muito sutis. O mergulho nas diversas camadas do texto possibilita ao leitor esse jogo intelectual de desarmar essas referências, apontando-as, divertindo-se com elas, como se fosse uma espécie de jogo dos sete erros. A referência imediata é o próprio protagonista, Luís, homônimo do grande personagem de Graciliano Ramos em “Angústia”.

 

FERNANDO – Há um certo estranhamento no olhar sobre o núcleo familiar, com suas neuroses, paranoias, suas relações não emparelhadas de personalidades ( relações especulares de Pai para filho) aqui pegando os aspectos principalmente masculinos. Você diria que seu romance faz um certo estudo da psique masculina?

LEONARDO Não diria propriamente um estudo, pois não passa de ficção, mas um mergulho calculado nesse universo patriarcal. Para um olhar atento, as referências à Carta ao Pai, de Kafka, são algumas das pequenas marcações intertextuais do tema em meu romance que, no fim das contas, é também uma tentativa de trazer, no nível narrativo, os tênues conflitos entre pais e filhos. A figura paterna é um fantasma permanente e ela se revela na própria entidade que, ausente no texto, paira formidavelmente: a figura simbólica do Demiurgo, do grande Autor, do criador, do Grande Pai. O protagonista revela, quase que anestesiado, seu relacionamento frio com o pai, de um lado, e com o próprio filho, de outro. Num determinada passagem do texto, quando lembra sua infância, ele nos conta que via no pai a figura do gigante, de mãos gigantes, protetoras, mas ao mesmo tempo, eram as mesmas mãos que o empurravam em direção à agonia. Essa relações se intensificam , se problematizam de tal maneira, que, não resolvidas, causam profundos traumas no protagonista, influenciando em sua trajetória.

 

FERNANDO – Há todo uma certa linguagem do recalque, do não dito, do interdito familiar, através de um vocabulário com forte tônica sexual, que você modula muito bem o coloquial-sexual. Como foi trabalhar esta linguagem?

LEONARDO – O problema é justamente como dosar a linguagem, seu tônus, timbre. Escolher entre o grito e o sussurro. No fundo, é esse o problema de todo escritor, a linguagem, não é? No meu romance – que no fundo são vários pequenos romances, se você considerar as leituras e escrituras do protagonista – há uma mudança radical de perspectiva narrativa (intencionalmente quis dificultar a identificação do narrador: quem fala? Quando fala?), de tal forma que, num mesmo parágrafo, é possível trocar o foco narrativo e o próprio narrador. Para cada uma dessas falas, uma maneira de dizer, de se expressar, oscilando entre o coloquial (rasteiro e chulo) e o absoluto formal, culto, mais arrogante (quase gabinetista, como diria Oswald de Andrade, fumos de um Conselheiro Aires). Esse jogo de falas integra o que gosto de dizer: literatura é o Lego da linguagem. Claro que o tema da sexualidade é muito forte em “Nessa boca que te beija” e isso se deve – e muito – aos conflitos internos do narrador. Luís é puro recalque. Não por outro motivo, sublimando seu desejo, escreve um capítulo inteiro sobre o tema: “Viagem ao redor do meu saco”, referência parodística e tematicamente enviesada do clássico de Xavier de Maistre, admirado pelo bruxo do Cosme Velho. Luís oscila entre o recato (forçosamente adquirido) e o desejo à flor da pele. Sua relação com a misteriosa figura amada segue (ou é seguida?) esse padrão: desejar e reprimir.

 

FERNANDO – Os livros dos escritores Tchecos parecem que rebatem como espelho a vida do narrador Luís. Por quê? há referência A Kafka |praga, e notei uma certa intertextualidade com Borges e também com a ficção latina, com a intrusão dos aspectos, fantásticos-fantasmáticos, estranho. Fale disso.

LEONARDO – “O Estranho” ou “O inquietante” (Das Umheimliche), texto medular de Freud, é para mim uma referência imediata de grande literatura dentro de “Nessa boca que te beija”. Sim, é antes deum texto metapsicológico uma grande narrativa literária. Quando digo que, desde o início, quis fazer do meu livro uma homenagem à literatura e, particularmente, ao cânone de minha experiência com os livros, é porque autores como Kafka, Freud, Graciliano, Thomas Mann, Jorge Luis Borges, Vico, Descartes, Joyce, Kerouac, Rylke, João Cabral estavam “condenados” a fazer parte da minha história, da história de Luís, de Klopstock, de Ela. O mundo escuro em que vive o protagonista não é muito diferente daquele do ser que habita “A construção”, de Kafka. Também não difere da mente alucinada de Molly Bloom, ou do bêbado Luís da Silva, o fluxo de consciência do protagonista em “Nessa boca que te beija”. Tenho que destacar aqui a relevância para o universo diegético do romance o problema da memória, que é muito importante no texto e que, no final das contas, é que vai oferece ao leitor um caminho para o “Inferno” (e aqui há outra referência querida ao autor que vos fala: o clássico homônimo de Strindberg) em que vive o meu Luís. Estruturalmente, o romance assemelha-se a um funil, com capítulos enormes iniciais que têm a intenção de encantar o leitor, como a serpente à vítima, e que vão diminuindo, diminuindo, até a última cena. A narrativa ganha ritmo acelerado, como feras desembestadas. A ideia é que o leitor seja a vítima desse funil e siga o personagem até a última gota.

 

 

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