Anderson Bernardes
FERNANDO – Como você pensou a estrutura do seu romance privilegiando vozes narrativas, aspectos de consciência, referências literárias, ao mesmo tempo que disseca o universo temático e fabular de dois rios?
ANDERSON – O texto de “não arranquem os vermes de mim” foi moldado a partir da intenção de lançar ao debate alguns temas que me são caros (a dor, a alienação e a arte) e, simultaneamente, retratar uma parcela da gente brasileira que permanece pouco visível ou quase invisível na produção ficcional do nosso país: as pessoas que estão mergulhadas nas obrigações da vida cotidiana da classe baixa, que trabalham para sobreviver e que atravessam a vida alheias ou quase alheias ao que se passa no mundo dos que imaginam decidir os rumos da nação. Começa intenção em primeiro plano, eu fiz as escolhas estruturais do texto e, a partir delas, busquei referenciais para dialogar com a tradição da literatura e das artes em geral. Esse diálogo me empolga, me entusiasma, me diverte. Eu diria que muito do prazer que tenho em escrever reside na possibilidade de conversar com o passado enquanto tento desembaciar minhas lentes de ver o presente.
FERNANDO – O romance é uma ótima forma de deslindar a psique familiar, e você desenvolve muito bem as relações especulares entre pais\mães e filhos, destino, livre-arbítrio, noções muito reais, mas também muito pertencente à uma mitologia narrativa romanesca. Fale disso.
ANDERSON – Entender as condições materiais e as relações sociais das personagens, principalmente no início da vida, no período de subjetivação, me parece a forma mais rica de criar as bases de sustentação da narrativa na minha proposta de literatura, que é realista em última instância. Se torna quase imperativo para mim saber de quais relações emergem os sujeitos que vão habitar o texto. No universo que tento alcançar, as relações familiares e de trabalho abarcam a existência quase inteira das personagens, pois as condições materiais não permitem uma vida muito além disso – com a exceção da prática religiosa. Só depois investigar essa formação psíquica e social das personagens me sinto apto a criar um caminho para que essas experiências possam simplesmente se repetir como versões ou tomarem um caminho oposto como aversões.
FERNANDO – O sentimento de uma espécie de sensação de exílio, como um despertencimento sobre origens parece matizar a personagem de origem de imigrantes japoneses. Como foi o desenvolvimento desta personagem?
ANDERSON – O sentimento de não-pertença, em intensidades diferentes, marca os protagonistas do romance. Eles são os indesejados do mundo. Não deveriam nem ter nascido, mas nasceram.
Representam, de alguma forma, a maior parte da humanidade, que, apesar de sustentar as estruturas vigentes, é vista por uma minoria míope de ganancia e egoísmo como o estorvo do planeta. Somos quase todos indesejados. Porém, atualmente, levados por mecanismos que tenho um pouco de dificuldade para compreender, muitos se julgam menos indesejados que outros, pura ilusão. E a personagem de origem japonesa nasceu com a missão de incitar o movimento de exílio dessas personagens sem lugar. Um exílio dos que não pertencem e que erram pelo mundo à procura desse lar que não existe – a utopia.
FERNANDO – O bingo parece funcionar como uma lacuna existencial para as duas mulheres. Como foi exponencializar este tipo de vício na vida cotidiana e psíquica das duas?
ANDERSON – Os bingos surgem na narrativa para representar o espaço do lúdico e também o espaço da esperança. Até porque eu acredito que ludicidade e esperança são indissociáveis. Naquele ambiente cercado pela tradição e pelo conservadorismo, as personagens encontram um refúgio para sentir o sabor efêmero da felicidade e para acreditar em novas possibilidades, num lugar onde, diferentemente da “vida real”, é possível vencer.
Bela entrevista. Tive a oportunidade de ler “não arranquem os vermes de mim” e a estrutura da linguagem foi que mais me impressionou. A gente esquece que está lendo e passa a apenas sentir.
Muito bom o romance