ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor João Lucas Dusi

borboleta - ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor João Lucas Dusi

 

 

 

Fernando – Você ultrapassa uma certa fronteira de demarcação, tanto política quanto de gêneros. São contos que parecem não ter fim em seus títulos, eles seguem como um romance aberto como as veias abertas da América Latina. Ao mesmo tempo que é um livro sobre  a arte de escrever sem compromissos ou certo formalismo, com se sua escrita fosse aberta ao mundo/entorno, com referências e citações. Fale disso.

João Lucas – Minha literatura é feita de quem eu mesmo sou. Ou assim gosto de pensar. Não gosto de separar muito as coisas. É óbvio que existe uma voz que narra, e que essa voz tem sua vida própria e também suas opiniões. E que suas opiniões e ações podem ser horríveis. Mas a vida ela mesma pode ser horrível — meio que majoritariamente o é — e nela, na vida, estou inserido. Vivo, observo, absorvo, descarto ou registro. Sinto e registro. Ou não sinto nada, e o absurdo do vazio é que acaba registrado. O piegas também é válido. Os autores que gosto, e não são necessariamente os escritores, me ensinaram que não é preciso ter compromisso com o formalismo para atingir o nível que um acadêmico blasé (que foi da graduação ao pós-doc, índice de rendimento altíssimo) jamais sonharia — Thomas Pynchon, Roberto Bolaño, David Foster Wallace, Harmony Korine, Michel Houellebecq, Reinaldo Moraes, André Sant’Anna, Mike Tyson, Kobe Bryant. Eles me ensinaram que o que conta é a honestidade e a potência, o trato ímpar com a linguagem (ou com a vida, o modo de se existir) não ensinado pela escola de escrita criativa ou pelos padrões morais festejados. O que conta é tentar cuspir pra fora a verdadeira tormenta, e isso deve sair lá do meio do quinto dos infernos. No caso dos escritores, eles me ensinaram que, por mais que eu tente, jamais vou chegar nem perto do que atingiram. É muito por isso que, sabendo-me incapaz, pauto minha escrita nas referências e citações. Pauto minha escrita no outro. É um atestado de falência, basicamente. É o que posso fazer de melhor dentro de minhas capacidades: cooptar o próximo para meu universo, compreendendo que o meu próprio não basta. Mas, afinal, quem é que basta por si mesmo? Há somente aqueles que fingem melhor, isto é, fingem melhor a autossuficiência. Ou não: talvez realmente existam mentes criativas, e aquelas que não o são fazem esse tipo de discurso rancoroso acima, pretendendo talvez algum tipo deturpado de altivez.

 

Fernando – A arte de ler os outros no seu livro é tão importante quanto a arte de escrever, como uma escuta do que se interiorizou de autoria. Como é a sua leitura? E como ela se processa em escrita?

João Lucas – Comecei a ler a sério com 16 anos de idade. A iniciação foi com Bukowski, assim como para muita gente, especificamente com o livro Factótum. E sim, o clichê se provou real: foi aquela abertura mágica para a porra do mundo de fadas do blá blá blá do cacete etc. Hoje, preocupa-me mais a leitura que punge no real. Mas o real, agora, se mostra tão fantasioso quanto qualquer fantasia. Se me fiz entender, ótimo. Quanto à segunda parte da pergunta: tenho uma memória afetiva muito potente. E uma memória em geral, também. Quando algo me toca, esse algo fica guardado. Quando estou escrevendo algo relacionado a esse algo guardado, esse algo guardado surge e agrega na escrita. Não me importo em utilizar esse algo diretamente. Interessa-me muito, na verdade, utilizar esse algo diretamente — nomeá-lo, utilizá-lo descaradamente, mostrar que estou usando exata e necessariamente o trecho de autor X, ou a situação ou ideia criada por autor Y. Quero que minha literatura seja um recorte de tudo que existe, do que consumi. Quero que saibam que sou o que li. Quero que saibam que não crio nada, porque quero que saibam que sei que ninguém me engana se pensam que estão enganando alguém com essa história de artista que inova. E sim, tudo isso é puro papo furado: tenho um ego gigantesco, morro de vaidade com relação à minha literatura e acho-a super especial e única. Estou a todo momento lendo o próximo, pois morro de medo que consigam me ler. Quão óbvio é isso? O mundo é um livro aberto. E também não é. Piada pronta e de mau gosto.

 

Fernando    Bolaño parece ser uma referência para você. Este livre caminha pelos trilho soltos da América Latina. Todo poeta escritor pode ou deve ser um andarilho? Esta falta de posição no continente, não sabemos as demarcações de gêneros entre os estilos da América do Sul? Ou sabemos? Há sim, talvez, jeitos muito singulares de escrever, não falando em estilos, como se a linguagem do autor sul-americano fosse fragmentária e fluida, porosa. O que você acha?

João Lucas – Não sei falar sobre isso de forma abrangente. Agora, sobre Bolaño sei. E ele representa, sim, essa fluidez. Ele foi um andarilho (viveu em três países, viveu a vida intensamente, trabalhou em tudo quanto é tipo de subemprego e comeu o pão que o diabo amassou). Roberto personifica esse deslocamento do autor latino-americano. Personifica, acho, toda a América Latina. Não que eu conheça porra nenhuma, é só um palpite de um romântico ignorante e que não viajou por nada, tampouco conhece qualquer coisa. O mais longe que fui foi para São Paulo, olhe só, então pense bem antes de prestar atenção em qualquer coisa que está lendo aqui. Se ele, Bolaño, puder ser um porta-voz disso tudo, digamos que sim: a linguagem é fluida. E de minha parte, sim, a linguagem é fluida porque sempre estou roubando um pouco de cada autor que me toca. Nunca estou parado, sempre estou furtando. Só que a minha linguagem não é minha, como já disse. Ou é minha justamente por ser a soma das linguagens que consumi — é minha por não ser. E sim, todo escritor deve ser um andarilho e também um ladrão. Deve ser um sanguessuga e também um parasita. Um monstro e um amoral. Um baita filho da puta. Se tiver escrúpulos, vire voluntário em cenários de guerra. Ia dizer “vire padre”, mas sabemos bem o que acontece entre esses tipos. E, antes de mais nada, um escritor precisa ter senso de humor e ter a mais plena noção de ironia e escárnio.

 

Fernando Você tem um olhar bem crítico com relação a Curitiba. Por quê? 

João Lucas – Não estou inserido na cena literária curitibana e nem pretendo. Faço parte de um seleto grupo chamado Obsoletos — que, aliás, está prestes a se dissolver. É muito difícil conciliar os egos de um grupo de egomaníacos. Temos 4 volumes editados. O meu ranço para com a capital começa nas esquinas da Universidade Federal do Paraná, que é basicamente o local que mais frequento. Você se espantaria com os tipos que transitam por lá. Tirando duas ou três figuras incríveis que batem ponto por ali, como o Pedrão, por exemplo, o resto faz peso no mundo e é responsável por chacoalhar as placas tectônicas que volta e meia fodem o Japão. Literariamente, em geral, pelo que me permito acompanhar, Curitiba pode ser representada graficamente por um pênis flácido. A situação é assim: existe uma caneta gigante, empunhada por um ser ubíquo e onipotente; pedem a ele que representem a capital dos pinheirais. Ele desenha um pinto murcho. Isso é tudo.

 

 

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