Ana Meireles
Escritora e psicóloga
Dos filhos que nascem à beira dum rio, a vida gesta o cheiro da terra, o cheiro da mata, águas em abundância e até mesmo insuficiências de na alma fazer folhas verdes de amarguras. Dentro de um peixe (sangrado), a vida corre como um rio e gesta romances de existências. Um mundo molhado chamado Rio Armazém, mundo vivido onde “o tempo é uma folha que sangra”, uma folha que tece em silêncio destinos que não foram planejados , e se pergunta: Quais destinos podem ser planejados? Não se pode planejar destinos , mas na imagem da mente o desenho da infância em águas avultadas é supra possível: Peixes e redes ao derredor , cipós e cipoadas. Açoite no corpo e peles a sangrar. O ofício de pescar era preciso fazer direito, pois não era simplesmente tarefa de brincar. Era saber que os olhos do Pai estariam atentos e a canoa iria inspecionar. Lá era seu mundo!
A casa em que moravam recordava que tinha a conformação de um ninho de japiim e desta forma nela residia uma juntada de descarto. O que seria “uma juntada de descarto?” Na pretensa interpretação engendrada , seria uma possível conscientização de uma realidade que se convertia em gratidão ao Pai . Gratidão que se dava no desejo de que fosse servido de bom grado. E Lúcia, uma irmã, entre os outros irmãos, se encarregava de prestar os pequenos cuidados. Uma história em que, sobre águas, o passado, terreno fértil de lembranças, trazia a formação frutífera delineada em torno de uma árvore forte, uma mangueira, cujos frutos doces amainava a fome das horas a passar na boca os desejos e sonhos. As crianças, elas cresciam, crescem..
E dentro de um peixe a vida era uma continuidade molhada, fluida nos cursos e correntezas d’água. Muitas vezes tornava-se turva na escuridade dos fundos hídricos oriundos do tingimento das folhas que caíam em movimento incessante, folhas secas e folhas mortas…
Era a vida de se viver entre encantos, entre espantos, entre o medo da sorte e o da morte, crescer na dor do que ainda não se sabe , do que anoitece e escurece, e faz os olhos do peixe em claridades lunares experimentar o remanso e o perigo das águas dum igarapé e se deslumbrar embevecido na ventura da descoberta de amar e ser barro a moldar-se…
Porque, de todas as fomes que provavelmente os peixes sentem dentro de seus próprios rios , está a de ser alimento que sacia e lhe devolve à condição de gerar vida na abundância da água do existir…
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