ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor Fábio Mariano

FABIANO MARIANO - ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor Fábio Mariano

 

 

F.A. – Seu romance se passa numa cidade chamada Cartago, toda arte e literatura lida e estudada parece ter seu cerne na literatura do Leste Europeu, assim como na produção das artes plásticas. Criou-se uma estética como se a narrativa pairasse sob um efeito do deslocamento de normas de estudo ou classificações. A literatura latino-americana é mais vista por aqui. Um tipo de lugar de fala? Por quê a escolha deste universo temático?

F.M. – Acredito que duas coisas foram importantes para essa escolha. A primeira delas é um fascínio meu, que começa com o Milan Kundera, um autor que transformou a minha vida literária como autor e como teórico. O Kundera sempre falou de uma identificação entre a Europa Central (ele rejeita a ideia de Leste Europeu) e a América Latina, que vem a partir do barroco. Então foi uma coisa muito única, que pouco tem a ver com a minha experiência pessoal, já que minha família não tem nenhuma conexão com aquela região. A segunda influência foi que esse livro nasceu a partir de um curso que fiz com um professor na Unicamp, o professor Mágio Frungillo (que é também um baita de um tradutor), e eu decidi estudar, naquele momento, os Habsburgos, que me fascinavam. Não como uma família real europeia, não era isso, mas como aquela região do mundo tinha iniciado e finalizado o século XX, com o atentado ao Francisco Ferdinando e com a dissolução da Iugoslávia e o genocídio de Srebenica. Eu queria compreender certas continuidades, e um certo senso de apocalipse também. Li muitos livros que se passam ali naquela região num mesmo momento, mas principalmente fui marcado pelo Soldado Sveijk e pelo A Marcha de Radetzky. A insistência na multiculturalidade do império austro-húngaro num momento em que o nacionalismo escalava em todo o resto da Europa, acho que era isso o que me pegava. E aí eu fui querer mergulhar fundo nessa história do Império dos Habsburgo em termos culturais, e tentar entender cada pedacinho de cultura que o compunha, cada território.

 

F.A. – A leitura é um ato solitário, mas a produção de textos no mundo acadêmico obedece as regras de convivência social, de aparências sob o efeito do conhecimento teórico sobre as fontes que se estuda e a produção através de referências bibliográficas. Que tipo de relações um escritor que produz seu texto sozinho, pode tirar com tantas imbricações semânticas quando há certo tipo de vínculo social na produção da escrita?

F.M. – Eu sou um agente duplo nesse sentido, eu diria até um agente triplo. Porque ao mesmo tempo estou fazendo literatura, estou também vinculado à academia (hoje fazendo uma especialização em Relações Internacionais, mas que veio na sequência de um mestrado em Teoria Literária), e também dou aulas no Ensino Médio, o que é um esforço de traduzir aquilo que consideramos ser o mais urgente na formação dos adolescentes em uma linguagem que lhes seja acessível e que não lhes mate a curiosidade. Então me vejo sempre nesse meio do caminho de tentar dizer as mesmas coisas, mas sob regras diferentes. Acredito que no fundo estamos sempre olhando socialmente para as palavras, mesmo que essas marcas pesadas, dos teóricos de referência, das notas de rodapé, não estejam lá. A academia me ensinou a dialogar com a tradição, e a sala de aula, a encontrar o terreno no qual levar a tradição a quem não a conhece não pode ser, de maneira nenhuma, um ate de arrogância ou de afirmação de uma compreensão que pareça inacessível ao outro. Minha tentativa é a de escrever uma literatura na qual não seja necessário conhecer, por exemplo, Chopin, mas que dê vontade de ouvir, de procurar num aplicativo de música, “que música é essa”, “que livro é esse do qual ele fala?”, sem precisar, no entanto, parar de ler para fazer isso. É como eu me sinto, por exemplo, toda vez que o Haruki Murakami fala de uma canção de jazz que não conheço: quero escutá-la imediatamente, mas a vontade de continuar a leitura é maior.

 

F.A.-  Você fala do assédio nas universidades. Até que ponto o machismo reflete uma cultura de produção textual na acadêmia, e pegando o personagem Coca, ele parece fascinado pelo universo masculinista. onde narcisismo e competição parecem se adequar às cadeiras da universidade. Fale disso.

F.M.– Acredito que eu falo do assédio nas universidades porque o enredo todo acontece nas universidades, mas a questão não é só o assédio nelas: é ele em qualquer e todo lugar. O machismo se reflete todos os dias – e pensar que estamos livres dele, de sua estrutura, no meu ver, é pensar que conseguimos pairar sobre a estrutura da sociedade, da linguagem. Acredito que o primeiro ato, muito insuficiente, mas o ato que me parece mais necessário e plausível como início, contra o machismo, seja assumir que estamos inseridos nele, e que ele media muito das nossas dinâmicas sociais, dos nossos comportamentos, e nos compreender enquanto machistas e tentar, ao reconhecer esses atos, nos tornar conscientes deles. Na academia não é diferente. Outro dia, li um texto da Brit Marling no qual ela falava sobre formas de narrar que se apoiassem no feminino, e não no masculino, argumentando que a Jornada do Herói é baseada no orgasmo masculino, que ambos têm a mesma estrutura. De início eu resisti a essa comparação, mas depois pensei que eu tinha a obrigação de derrubar essa resistência, no mínimo. E desde então estou intrigado com essa pergunta: será que a jornada do herói é baseada no orgasmo masculino? É um dever meu, enquanto narrador inserido num mundo machista, pensar nisso. E na academia, não é diferente. Qual a quantidade de autores homens que privilegiamos, como estruturamos nossas narrativas de modo a impor uma narrativa nossa a uma série de referências coletadas, como um homem que quer impor sua voz? Será que não há outra maneira de produzir conhecimento?

E sobre o Coca, é estranho que esses personagens tenham nascido nesse momento em que vivemos… Quer dizer, parte dos argumentos da ala anti-intelectual do nosso país, não só dos que comandam, mas notadamente dos que apoiam e do que tentam intimidar a partir do seu apoio declarado, é uma afirmação de uma suposta masculinidade da força física que se opõe a uma suposta feminilidade do intelectual e do artístico. É uma oposição falsa e fácil, do tipo que funciona justamente para os que têm problemas de autoestima, insegurança, que precisam se afirmar de qualquer maneira… E é exatamente o caso do Coca: fragilidade, insegurança, que contrastam com a afirmação do gênio. Por isso o personagem carrega uma contradição nesse sentido: é alguém que deseja essas falsas seguranças do “masculino”, mas que transita num universo “feminino” – digo, de novo, uma oposição falsa e fácil. A própria novela contradiz muito disso com outras personagens, eu diria. Mas não quero sugerir caminhos de leitura.

 

F.A.-  Uma pergunta mais movida pela curiosidade. Por quê escolheu um café como ponto de encontro dos personagens que gravitam pela universidade? Que tipo de aroma um café pode sugestionar para a convivência entre professores?

F.M. – Tudo isso tem a ver com a própria questão do título, do universo do império austro-húngaro… Eu ainda quero, um dia, escrever um livro sobre a história dos cafés. O fato é que os cafés, como espaço de convivência, se tornaram uma das grandes marcas de Viena – uma cidade com a qual sonho, mas que nunca visitei. De novo, uma ligação forte entre a América Latina e a Europa Central, já que Buenos Aires – essa sim que eu visitei e que é uma das minhas paixões no mundo – também é cheia desses cafés tradicionais, históricos. O café e a literatura são totalmente irmanados, e o próprio conhecimento… O papel dos cafés sempre foi importante para os intelectuais, para os cientistas, ao longo da história da Europa, e não só dela.

Mas também existe aqui uma veia muito pessoal… O livro todo é muito pessoal. É uma homenagem aos meus tempos de Unicamp enquanto estudante de graduação e de mestrado, o tempo em que de fato eu vivia na Unicamp, em que eu permanecia na universidade. E foi nos cafés que eu aprendi muita coisa, nos cafés com professores, com colegas, com os funcionários… Nos momentos em que a gente deixava as coisas serem ativadas por aquele cheiro maravilhoso que tem o café – muito mais que o da cerveja ou o de qualquer bebida alcoólica. No caso dos professores de ensino básico, eu brinco que o café é parte da “ração pedagógica”, somado às bolachas maisena e água e sal… Eu tenho fascínio pelo espaço do café. Porque ele ativa memórias, porque ele significa o tipo de ócio mais maravilhoso, um ócio contemplativo, que tem muito a ver com formular ideias, com escrever, com pensar, é como se eles estabelecesse um campo, um tabuleiro no qual nossas ideias são colocadas e estimuladas, seja quando estamos sozinhos ou em um grupo. É um convite à reflexão e à discussão.

 

F.A. – Muita gente tem discutido os núcleos duros da sociedade, principalmente uma sociedade capitalista onde as relações são medidas pela força-competição. Como foi balizar estas relações, dentro de um ambiente que também é uma fábrica de egos?

F.M. – Antes de responder, eu queria balizar uma diferença, porque são assuntos importantes, para mim, e que estão no cerne da vontade de escrever esse livro. A universidade pública enquanto coisa pública, enquanto espaço de livre acesso, enquanto uma estrutura aberta (ainda que não necessariamente acessível) às pessoas, isso é fundamental. E isso está ameaçado por um tipo de lógica da sociedade capitalista, que é a da privatização, pura e simples: vender as estruturas que hoje são do povo, e a ele pertencem (ainda que não o sirvam, totalmente, mas essa é outra falha), para que se tornem de indivíduos, que têm sobre elas o direito de interdição e de segregação discricionária. Esse é um fenômeno ao qual ainda não sucumbimos, e ao qual eu resistirei com todas as forças que estiverem ao meu alcance. Esse livro é fruto de uma tentativa de resistir.

Uma outra lógica é a lógica mais sutil, de entrada da lógica do capital nas dinâmicas e nas mentes das pessoas inseridas na universidade. Nós falamos muito da universidade como fábrica de egos, e a verdade é que em todos os lugares sociais nos quais colocamos alguém como um sabedor privilegiado, existe a possibilidade de uma fábrica de egos… O que são os hospitais, os conselhos diretivos das empresas? São espaços nos quais há um sabedor privilegiado que precisa se afirmar pela lógica da disputa, e as armas escolhidas para a disputa são, idealmente, o nível de conhecimento, e, não idealmente, todo tipo de baixeza. Mas não acredito que isso seja só da universidade. O problema é que esperamos da universidade que ela resista em todos os sentidos humanos, como se os seres humanos que a habitam fossem capazes disso. As forças competitivas estão lá, também, mas estão em outros lugares. Ali, o conhecimento como arma costuma ser mais explícito, mas assim como a questão do assédio, acredito que essa questão da competitividade seja uma das grandes forças motrizes dessa máquina de exclusão e violência na qual vivemos, e que temos de arranjar alguma maneira de quebrar antes que nos quebre a todos – o relógio do planeta, o da miséria, o da fome, o das necessidades básicas, o do refúgio, o da guerra, são tantos… Eu acredito que a solução passe pela solidariedade, pela cooperação, pela busca do consenso; por uma coisa sobre a qual o Zygmunt Bauman, aquele velhinho polonês maravilhoso, fala, que é a tentativa de interpor ao meu espaço e ao seu espaço um espaço coletivo, a ideia de fazer política na cabeça, imaginar um espaço coletivo na cabeça, antes de partir para o cabo de guerra do encontro de individualidades. Não é só na universidade: nossos tempos parecem tempos de perda da imaginação desse espaço coletivo, e não é à toa que se fala tanto em mercado, que se endeusa o tal do mercado. A filosofia do mercado como ponto de encontro e resolução de todas as necessidades humanas é, ao fundo, a ideia de que o resultado final de um pega-pra-capar seria uma sociedade equilibrada: cada um puxa a corda para o seu lado, e ela vai parar no ponto ótimo. A proposta que tiro aqui do Bauman, mas que ele diz pertencer a um outro tempo (e acredito que ele diga isso no Modernidade Líquida, mas não tenho certeza) é simples: e se antes de começarmos a puxar, pensarmos em uma maneira de fazer todos terem um pequeno pedaço dela, que seja minimamente confortável para que ninguém lacere as mãos, para que ninguém sangre, para que ninguém seja pisoteado?

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