A desmatematização pela linguagem em Logaritmosentido, de Fernando Andrade | por Alexandra Vieira de Almeida

LOGARITMO SENTIDO - A desmatematização pela linguagem em Logaritmosentido, de Fernando Andrade |  por Alexandra Vieira de Almeida

 

 

Alexandra Vieira de Almeida – Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)

 

Apesar de utilizar um termo especificamente da matemática no título de seu livro de contos (Penalux, 2019), Fernando Andrade busca, pela linguagem, desmatematizar a construção dos sentidos racionalizantes. Seu livro é uma ironia ácida contra toda forma fronteiriça de estruturar tudo tão perfeitamente que isole de seu cosmo as diferenças a partir de um suposto purismo de gêneros e estilos. Logaritmosentido é formado por sete seções, e o número escolhido não é por acaso. Como representante da perfeição e da totalidade, ele é um arquétipo dos ciclos perfeitos. Mas a obra de Fernando se constrói a partir da fragmentação e desconstrução do que é perfeito num sentido moralizante. No Dicionário Eletrônico Houaiss, temos o significado do termo “logaritmo”: “Expoente a que se deve elevar um número tomado como base para se obter outro número”. Saindo dessa exatidão numérica, seus contos flertam com a caoticidade dos sentidos, como bem observou a prefaciadora do livro Clarissa Macedo. Uma “ordenação- caótica-das coisas”. E Leonardo Villa-Forte que fez a orelha disse que, neste livro, temos “uma espécie de reinvenção do olhar para a cidade e para a relação entre os cidadãos…”

Essa mistura entre o horizontal e o vertical no seu horizonte de expectativas cria uma dinâmica entre o claro e o escuro, o visível e o nebuloso, que se intercomunicam a partir da essência da “ilogicidade lógica”, do “caos controlado” e organizado pela escrita. São as palavras que impõem os limites neste mar bravio que afunda nossos sonhos no chão da realidade, unindo o onírico e o existencial, o Oriente e o Ocidente. No Oriente, temos a presença dos contos curtos nas relações entre mestres e discípulos, os koans zen, por exemplo, que subvertem nossa razão ocidental tão arraigada numa lógica que não admite infiltrações líquidas da sensibilidade e lirismo mais arrebatadores. Logo no primeiro conto, temos os personagens como números que vão construindo a formação da matéria enquanto o zero não teria utilidade. Aqui, o valor útil, de função social, é valorizado. A partir da personificação dos números, vemos humanos construtores que construiriam um muro, mas não admitiriam os buracos, os vãos, o que é ócio em meio ao negócio, contrastando a força do trabalho ao lazer, algo que Freud explorou a partir de seu pensamento crítico quanto à civilização ocidental. Enquanto o número 1 e 2 vão montando o muro, Fernando Andrade numa veia aberta sarcástica diz que zero “lia caderninhos de pornografia”. É também pela via humorística no seu teor mais crítico, que Andrade conduz suas narrativas cheias de humor ácido a cortar e sangrar as peles mais finas e sensíveis dos leitores desavisados.

Em “Atire a primeira pedra”, conto que traz a sabedoria milenar oriental, mas encabeçada pela frase bíblica com que Cristo interpelou os preconceituosos contra uma prostituta, Fernando constrói dois momentos no conto excepcional, um dos meus preferidos do livro. Ele reconstrói os termos que seriam psicanalíticos num viés literário, produzindo um jogo artístico. Ele apresenta “In” como o espaço de dentro e “N” como negação. Tudo para explicar a complexidade de um objeto tão material, que é a pedra. A pedra, por ser pesada, é um corpo cheio, que precisa de uma causa primeira, de um motor, para se movimentar. Apesar de sua imutabilidade, ela corre no rio e se alonga nas suas bordas a partir desse meio. É por meio da ação que as coisas dão um impulso como uma “catapulta”, a mão que levará ao movimento de atirar a pedra. Sem esse motivo, sem outro que lhe dê mutabilidade, a pedra se caracteriza por sua “fadiga”, numa metáfora ricamente utilizada pelo contista.

O homem que nada nas águas é prenhe de certeza indo contra a correnteza e não se afundando como um suicida. Neste conto magistral se reflete sobre a essência de um ser existencial, o suicida, a partir de sua materialidade, o abstrato e complexo, pelo concreto. Por isso, a matemática aqui ganha ares de imprecisão, pois a eternidade da pedra se adequa ao seu movimento, a contradição entre o não movimento e a mudança. Se a pedra se caracteriza por sua imutabilidade, o ser é mutável e aderente às flutuações dos ânimos. Outro fator preponderante na sua escrita é a recorrência à etimologia das palavras no seu sentido originário, como neste conto, ou na “neologização” das etimologias, como veremos no conto “Trump e seu Trumpete”. O seu livro de contos é um caleidoscópio de saberes, pois se, no primeiro conto, parte do matemático para o filosófico do segundo conto, no terceiro texto ele aborda a questão social através dos viciados em drogas. Temos, assim, em Andrade, vários movimentos ondulatórios ao som do infinito, a biblioteca de Borges, onde caberia tudo. No conto terceiro, “Petrificante”, apesar de tratar de uma temática socializante, temos um desdobramento da imagem da pedra do conto anterior, só que com outro teor. É como se ele realocasse as coisas e objetos em diferentes lugares, dando-lhes sentidos múltiplos, como a literatura mais original requer. No mesmo campo semântico, Fernando dá espaço para os espelhamentos e geminações, só que num movimento espiral em diferença e não na circularidade da monotonia e repetição. Cada conto é um universo diferenciado com tons de cores muito amplas, dando contornos expressivos ao livro.

Seus contos explodem no grito do inusitado. No conto “Ana cria corvos”, se num ato artístico inicial de encher um balão, temos o lirismo da poesia, o contista dá uma tônica holística e mística ao ato inicial, subvertendo o olhar do narrador, que não se mostra como sempre igual a si mesmo ou confiável. Nesse sentido, é pela força do imaginário, que Fernando Andrade cria suas maiores pontes, unindo, a partir das analogias e diferenças, elementos os mais diversos.

O conto me fez lembrar do heterônimo Alberto Caieiro, pois Ana tinha horror à leitura e às definições escolares. Num processo originário de “desgramatização” da ordem, Ana nega a cultura ocidental em favor da observação da natureza sem nenhum artifício intelectual, da norma dita culta dos doutos. Em “Mark”, percebemos o jogo com a palavra e seus desdobramentos, a parte e o todo; suas combinações e variações. Aqui, encontramos o ritmo da poesia em meio à prosa, com a musicalidade exponencial do conto. O texto nos fala da persona, da construção de um ser, de um indivíduo e identidade, em meio à máscara social. O nome Mark conduzia a brincadeiras, piadas e bullyings. Toda a semântica à sua volta conduz a erros de interpretação, uma realidade permeada pela palavra Mark e suas combinações. E Fernando retoma o objeto muro aqui numa ressignificação, pois Mark lê nele a frase, “O erro é que nos faz existir”. Palavras em outros sentidos retornam na sua escrita, revelando toda a movência do ficcional em sua pluralidade.”

Em “Impressões trânsfugas”, há a obliteração e alteração das percepções pelo tempo e espaço, mostrando as idiossincrasias e individualidades de cada um. Os defeitos não são vistos como defeituosos, como erros de fabricação, mas como marcas de cada ser. Em “Falanges do corpo”, Fernando diz: “Um mapa do Macapá descendo na geografia do seu corpo. Um norte na cabeça”. Aqui, a geografia dos corpos produz um itinerário, uma viagem pela materialidade. Há construções complexas com as rimas, com a rima rica “mar/amar”. Uma palavra está contida na outra, a parte no todo, como se os corpos falassem a língua dos entrecruzamentos de imagens, de fronteiras que se desmancham no céu da boca. O erotismo move os seres numa viagem interior e exterior. Há a harmonia entre corpo e natureza, onde a linguagem é esta ponte que conduz à união entre o corpo do ser e o corpo da natura. Em “Aldo na fronte”, aparece a viagem também, a continuidade que não faz o jogo da linearidade, mas a invenção que dá saltos quânticos no tempo e no espaço sem a monotonia da semelhança angustiante. A diferença é seu tom maior mesmo que ela reutilize os mesmos materiais e elementos. Essa bricolagem artística perfaz o caminho de toda a originalidade de Fernando que não se contenta com o desalento da repetição. A retomada tem um quê de estilhaçar. Esse conto nos remete à figuração da esfinge, pois o personagem, que é do ramo dos negócios, tem de decifrar um enigma a partir das palavras, de um fator semântico de interpretação e reinterpretação, um jogo textual que o narrador conduz o leitor, como uma espécie de Édipo a desvendar os segredos dos textos a partir da leitura. O personagem recebe cartas com mensagens enigmáticas. Há o remetente e o destinatário. Ele também envia mensagens a esse outro desconhecido. O paradoxo se cria. Por ser um homem do comércio, ele tem de lidar com os jogos da linguagem.”

Num prolongamento movente e giratório, no conto “Lojas Fama”, temos, novamente, o universo do comércio, só que em outro plano, misturando os tecidos e as novelas televisivas. A estampa que tem muita “fama” desenhada. Fernando trabalha exaustivamente com o arquipélago dos significados mutantes como barcos em torno de suas ilhas sempre cheias de sentidos e matas de símbolos, num labirinto verdejante. Suas palavras navegantes se encontram nos oceanos dos delírios bem costurados pela poiesis. Em “A absorção da primeira leitura: a fatia ou o teatro”, deparamo-nos com a desterritorialização, que nos tira dos lugares de conforto. O percurso não é simétrico, mas assimétrico, como numa orquestra dissonante. Ele fala do desejo como errância, não movida pela razão. Aborda o setor da economia através do preço caro de um bolo numa cafeteria, 15,00. Enquanto o bolo é a obra de um indivíduo, o teatro é o espaço da coletividade. Arte custa 20,00 ou até menos 10,00. Um prazer de durabilidade maior do que a degustação de um bolo. Ele diz: “O consumo é a base do Capitalismo”. Aqui, a crítica social se casa ao prazer sensório, a algo que leva à “sofisticação”. Cita pensadores, como Calvino nas suas reflexões sobre o livro e a literatura. E Fernando arremata com relação ao que vai à boca, à barriga, o que é comestível, ao gosto literário, o livro como objeto e prazer, mesclando o saber e o sabor, a analogia entre o bolo com suas fatias e as páginas-fatias de um livro.

No conto “Trump e seu Trumpete”, vislumbramos o encontro entre as artes: a literatura e a música. As palavras e os sons, pois o personagem é um músico que toca trompete e vive numa pocilga, um hotel decadente com um dono chamado Homero, ironizando um nome ilustre e sublime da literatura num meio miserável, deslocando os sentidos. Fernando até apresenta no conto um Glossário para três palavras que se comunicam no texto: Trompeta, Trompete e Trump. Brincando com os sentidos numa dança textual e irreverente, Fernando mescla o significado político ao bisbilhoteiro, demovendo o sentido original de uma figura política através de um instrumento musical, desdizendo a aurora das coisas em sua simbologia clarificante, ao criar o “anoitecimento” das palavras em seus paradoxos de pertencimento e despertencimento, “neologizando” o sentido etimológico pela semântica nova que a literatura proporciona. O instrumento se caracteriza por sua lascívia nos remetendo aos grandes mestres, com o erotismo que une a música com seu objeto fálico com as palavras sempre desérticas a desejar a penetração do som a incutir-lhe desejo e prazer sem igual. O ineditismo das palavras inaugura novas formas e cria a expectativa de Eros a encontrar o sopro de uma “pequena morte”, que assola os espaços vazios do instrumento, na figuração da mulher e sua potência feminina amorosa, o receptáculo do sopro nas vias labrirínticas do trompete. Nesses jogos de Eros, que Trump, descobre um segredo no Hotel, que o deixa encabulado, os fragmentos de Eros a nos amenizar com as vozes do silêncio.

Para finalizar, a última e sétima parte do livro tem um título estratégico, “Gêneros”. Ela aponta tanto para o sentido sexual quanto literário. Os gêneros masculinos e femininos que são nublados e ressignificados – um capítulo que mistura dois gêneros distintos, o conto e a poesia.
Mas uma prosa poética que é uma espécie de conto no final do livro. Os contos desta seção vão tratar de pai, mãe, filhos e casais e num deles temos a indeterminação dos gêneros sexuais com a inversão das polaridades, meninas e meninos. As questões dos gêneros se dão através dos véus implícitos da literatura sempre forte e intensa na obra de Fernando. Eles revelam os desconcertos e “despadronizações” do lugar que cada um ocupa na sociedade.
Temos, aqui, os hábitos de homens e mulheres, na sua semiologia cambiante e ambígua. E Fernando joga com os gêneros nos dois sentidos, no conto “Colher de chá colher de sopa”, citando barba azul e cinderela, as crianças que não se definem e a divisão entre os gêneros contos e poemas. Aborda também nos seus contos a homossexualidade sem fissuras ou preconceitos. No seu poema em prosa que está no final de Logaritmosentido, o escritor fecha belamente o texto com o verso entre parênteses: “(Um autor é só um entrevistado para a morte)”. Pois a obra é feita de escritas e reescritas, de morte e de vida, de lapidação, que corta, reconstrói, remenda e supera a morte pela linguagem poética, um grito de liberdade que esfaqueia a lógica matemática do universo.

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