Fernando Andrade entrevista o escritor Ricardo Terto

 

RICARDO TERTO 778x1024 - Fernando Andrade entrevista o escritor Ricardo Terto

 

 

FERNANDO ANDRADE – Seu livro parece conter toda a burla da comédia humana, com uma voz de um observador inato da natureza do percalço humano em todos seus vícios. Seu tom parece acertar no lado B da vida, o lado da arte com toda sua crítica à sociedade de consumo-capitalista, acertando nos seus piores “erros” tragicômicos.  A escrita é mais certeira quando se (des)escreve pelo lado “outro” da rua?

RICARDO TERTO – Eu acho que essa sensação é construída através da minha escolha ao destacar personagens presos ao auto-engano. Todos os personagens de todos os contos entendem a própria realidade através dessa enganação em maior ou menor grau. A bússola inútil de um marinheiro, um outro que busca ignorar uma faca cravada na nuca, outro cria uma correspondência afetiva no seu trabalho como cobaia… eu acho que a abordagem para aproximar os leitores desses personagens, cujo a personalidade é definida pela incapacidade de lidar com estas questões sobre si mesmos, surge com a ridicularização e o penar. Eu não sei dizer se é a forma mais certeira, mas é um caminho que provoca bem. Tanto que muitos retornos que recebo do livro é de que os contos poderiam ser narrativas mais longas, mas de certa forma o Dias é uma narrativa longa, diluída em pequenos acidentes. A tragicomédia é o todo quando nos afastamos e vemos a relação entre os contos.

 

FERNANDO ANDRADE –  Você usa personagens meio à margem do sistema, e tem um certo afeto por eles.  Como foi desenvolvê-los? Lembrando do A dança do moinho dos vento.

RICARDO TERTO – Isso surge da minha própria experiência de me sentir uma figura meio deslocada e nos trabalhos, nas relações, as pessoas deslocadas também me intrigam muito. Veja, eu não estou falando nem de longe de uma excentricidade hollywoodiana, esteticamente desarranjada para ser carismática. Tô falando de deslocamento mesmo, por exemplo, Lilian Sais uma vez num samba ali pelos lados do Butantã, um sujeito conhecido como Lagartixa, panderista genial, parece que tocou no Fundo de Quintal ou coisa assim antes de cair nas drogas. Mesmo quase completamente desconectado quando pega o pandeiro ele gera um aura exuberante ao seu redor, sabe? Quando você está diante de algo… veja, não acho são como necessariamente o Lagartixa, eu acho que quem sente essa aura exuberante é que é o deslocado, porque pro resto, é um cara aí meio doido fazendo graça no pandeiro. Eu acho que esse deslocamento de pensamento, gera um deslocamento de olhar mesmo, eu quero tudo olhar por um outro ângulo. Bem, quem tem um outro ângulo sempre provocativo são essas figuras marginais e/ou marginalizadas. Sobre a construção dos personagens ela acaba por ser geralmente a mistura de algumas coisas que observei nessas figuras que me despertam o interesse, com outras coisas que ia anotando por pura curiosidade. Em a Dança dos Moinhos de Vento, eu pego a doença do Cortázar, que era um tipo de gigantismo chamado acromegalia, e misturo com essa coisa do Lagartixa, um cara que conseguia evocar um aura em contato com alguma coisa muito importante pra si, meu irmão também era assim com o cavaquinho e por isso que tem tanta referência à música nesse conto. Isso do gigantismo também escolhi porque tive a imagem muito clara de que uma pessoa crescendo sem parar vira uma espécie de árvore, ela se encurva, sente o peso do tempo e da gravidade e se encurva. A imagem de um árvore toda encurvada foi a inspiração para começar a escrever esse livro. Todos os personagens são “encurvados” de alguma forma.

 

FERNANDO ANDRADE –  Certos contos como Éden partem para o grotesco, ou o bizarro. Há na sua escrita alguma crítica à padrões de comportamentos sociais e políticos?

RICARDO TERTO –  O meu tema principal já faz um tempo é a ilógica. Minha teoria é a de que o mundo é ilógico e de a gente naturalizou os procedimentos que temos que aprender para corresponder a essa ilógica. É um material vasto pra mim e nunca canso de me impressionar, com as coisas grandes e as pequenas. Essa epidemia que está tomando o mundo enquanto eu respondo essa entrevista, por exemplo, no Japão, um dos países que são conhecidos pelo pensamento racional e tal, deixaram pessoas confinadas em um navio e aos poucos o que era um caso virou dezenas de mortos. Isso é ilógico, isso poderia ser um conto dos Dias Antes de Nenhum, poderia ser o conto , sabe?

Eu trabalhei em muitos empregos na vida, de vendedor de pá, entregador de água, aquele lugar do conto Ferrugem realmente existe, eu trabalhei em reciclagem de metais e tirei muita coisa daquela experiência, na maioria desses empregos eu experimentei uma série de procedimentos ilógicos inquestionáveis, rituais ridículos de encenação como no conto As Vantagens Econômicas do Apedrejamento, que as vezes descambam pro surrealismo como em O Pintor, que é sobre um cara que nunca consegue terminar uma tarefa simples, na qual ele é especialista. É importante dizer que o recorte que eu uso no Dias pra falar dessa ilógica é o trabalho. O trabalho pra mim é condutor máximo dessa ilógica, que é inclusive, mãe da ficção.

 

FERNANDO ANDRADE –  A linguagem teria a seu dispor os próprios mecanismos de contra-ataque à boçalidade humana? Quando filigranamos as palavras e os seus sentidos, o ataque ao establishment parece mais criativo?

RICARDO TERTO – Tem um livro muito interessante chamado ‘A Sociedade do Cansaço’, do Byung-Chul Han que vai dizer que até certo tempo éramos a sociedade do dever e a partir das transformações tecnológicas e de ultra-produtividade passamos a ser a sociedade do poder, o que seria uma forma muito mais profunda de escravidão em que é o mesmo sujeito é senhor e servo. Essa violência advém da ideia de que temos um poder infinito, representada pelo consumo infinito, como playlists infinitas, infinitos artigos para se ler, infinitos stories, então entramos nessa lógica do auto-engano de que nós temos que ser essa potência produtiva infinita. A linguagem em si pode ser utilizada para regenerar alguns conceitos dentro desse poder infinito, então é curioso notar como a publicidade se esbaldou no termo Empoderamento. Por outro lado acho que a linguagem, obviamente não restritiva ao texto, mas fazendo esse recorte por conta do tema da conversa, ela pode também se propôr ao caminho inverso, que é o da ruptura com esse suposto poder infinito. Por isso, não entendo essa questão como um contra-ataque, mas como uma suspensão da força em si. O cansaço hoje é a nossa rejeição mais direta ao status, ao sistema de produtividade máxima, do máximo aproveitamento de tudo, do capitalismo tardio em si, que pauta as relações através do desafeto. Por isso o último conto traz na forma da gravidade que cresce exponencialmente, tal qual essa epidemia de agora, uma ideia de cansaço infinito. No colofão do livro eu escrevo que continuo achando desafeto uma palavra impossível. Essa crença no afeto é a natureza da linguagem e se for nesse sentido que estamos falando então sim, há uma possibilidade de oposição. O resto é algoritmo.

 

 

 

 

 

 

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