‘O gelo que não se derrete’ – conto de Fernando Andrade

 

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Enxugar o gelo com a temperatura à 38 graus, é funcional? Ana achava que não. Até porque seu relacionamento com Pedro tava um inferno. O alto teor de gritos e discussões colocado na sala de estar. Não era uma pedrinha que se coloca na sua Coca-cola, mas sim uma enorme pedra que parece que não derretia apesar do calor do verão do Rio de Janeiro.

Enxugar gelo para Ana que queria que Pedro fosse embora, era algo que contrariava a leis físicas da termodinâmica. Principalmente da dinâmica das relações onde um quer irritar outro até mandá-lo para o inferno. Para Pedro, aquela pedra, não era uma questão de incongruência semântica. Ele é artista plástico, portanto o gelo é sim um objeto de arte que saiu de uma galeria e foi parar ali, por uma situação de imagens consistentes.

Para o sarcasmo de Pedro aquela imensa pedra de gelo era até refrescante pela falta de circulação de ar ali dentro. Ele até colocava suas mãos para ganhar um frio que não era na barriga, mas nos braços que na imagem poética do seu cunhado era de afetividade poética. Se você tem mãos e braços gelados então, meu irmão, o afeto está faltando. Ana todo dia raspava a pedra no intuito de desgastá-la até seu fim. Mas no dia seguinte a pedra não se enxugava; não se derretia pelo pedido mais sacramentado de Ana. Ela levou esta questão para seu analista.

Jô, será que a pedra não se des-basta por que na verdade eu ainda quero o Pedro?

O analista levantou e foi pegar um livro de poemas. Leu o seguinte trecho do poema

 

“Bato à porta da pedra (pedro) marcação do analista.
Sou eu, me deixa entrar.
Quero penetrar no seu interior.
Olhar em volta,
Te aspirar como ar.

“Vai embora diz a pedra
Sou hermeticamente fechada.
Mesmo partida em pedaços
Seremos hermeticamente fechadas.
Mesmo reduzidas à pó
Não deixaremos ninguém entrar”.

 

O analista diz até este trecho vês que está enxugando algo que cresce apesar da lógica de que a pedra deveria se derreter por você.

Toda imagem de pedra requer uma interrupção de uma circulação de imagens, como uma pedra nos rins, como a pedra do Drummond no meio do caminho, ‘tinha uma pedra no meio do caminho’.

Ana saiu com um sorriso nos lábios, aquele que aparece de cem em cem anos nos lábios de um gato.

 

Fernando Andrade – poeta, contista, crítico de literatura e jornalista.

 

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This Article Has 1 Comment
  1. Roberto Monteiro Reply

    Meio samba do crioulo doido… por isso eu gostei…

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