FERNANDO – Você desenha seus contos próximo a um universo fabular, mas com o tato das mãos na intuição da escrita. Como se apenas a gênese da fábula aproximasse você do leitor para escutar coisas do afeto ou do coração. Fico me lembrando do poder de uma reza se não seria tão semelhante à fábula. Temos uma moral nas duas. Mas na literatura, ou na sua litúrgica narrativa há música no tom ou som. das palavras. Comente.
FLÁVIA HELENA – Você não é a primeira pessoa que nota nos meus contos uma proximidade com a fábula. Realmente, essa semelhança existe. Neles, o espaço é indefinido e os protagonistas não são nomeados. Também não há um tempo preciso. Isso é proposital.
Quando escrevi o Sem Açúcar, eu tinha o desejo de que as pessoas se reconhecessem nas histórias.
Vissem que aquelas são situações a que estamos todos sujeitos. Que somos falíveis como os personagens ali presentes. Por isso, também, escolhi apresentar as mais diferentes questões: as perdas em geral, a exploração do trabalho doméstico, o amor não correspondido, a traição no casamento, o não desejo de ser mãe, o abuso sexual de crianças, a depressão, a morte e por aí vai.
Havia também a questão da frustração. Os personagens sempre se decepcionam e o sucesso deles está em conseguir, das maneiras mais inusitadas, se adaptar a suas fraquezas e a seus fracassos.
Eu gosto muito da maneira como a poeta Divanize Carbonieri sintetiza esses dois pontos na orelha que ela escreveu para o livro: “Não há finais felizes ou tristes para esses personagens e também para nós, simples humanos, que desde sempre temos que aprender a lidar com a enorme falta daquilo que nos faria completos”.
Para mim, o tema central de todas as narrativas é a necessidade de aprender a lidar com as faltas, com os buracos que nossas vivências vão nos causando. Na vida, nunca seremos plenamente realizados. Se fosse para eu escolher uma moral, seria essa.
FERNANDO – Há sempre um gesto a revelar através das ações dos seus personagens, algo como uma cortina que se levanta e deixa o sentido mais pertencido. Não por que ele não estivesse exposto, mas você o semantiza com véus que são quase imagens tanto visuais e sonoras e de repente a ação se descortina inteira. Isto procede ou não?
FLÁVIA HELENA – O livro usa uma linguagem bastante simbólica. Imagino ser esse o véu a que você se refere. Esse simbolismo tem a ver com o caráter fabular de que eu falei na pergunta anterior. Por não tratar do absolutamente concreto, a linguagem dos contos faz as situações retratadas não serem de ninguém em especial, mas pertencerem a todos nós.
Além disso, há também o que algumas pessoas que escreveram sobre o livro chamaram de insólito, outras chamaram de fantástico, que é o sobrenatural atrelado ao cotidiano. Por exemplo, a mulher que come formigas para aliviar a dor, a empregada doméstica que foge de seu trabalho pelo ralo, o homem
que cria um aparelho capaz de preservar sua consciência.
Esse foi um recurso intencionalmente usado. A finalidade era mostrar que os problemas que enfrentamos são insolúveis no domínio da realidade. Nas histórias, os conflitos somente se resolvem por meio da fantasia. E aqui volto àquilo que eu já havia mencionado anteriormente: minha intenção era mostrar como, na vida, desde sempre, somos obrigados a lidar com nossas frustrações dos modos mais inesperados.
FERNANDO – Fico curioso por saber como você começa? A trama vem inteira? ou se faz pela poética das frases?
FLÁVIA HELENA – Quando eu vou para o computador, a trama já está toda formada. Eu costumo dizer que eu escrevo meus contos e poemas primeiro na minha cabeça para depois redigi-los. Às vezes, esse processo de gestação demora semanas. Claro, que depois de passar tudo para o papel, eu lapido minha escrita, trabalho a linguagem, desenvolvo a poesia do texto.
FERNANDO – A sua linguagem é infinitamente bem trabalhada na relação da intimidade dos personagens com a sua expressividade de fazê-los bem de carne e osso com uma certa fundura de campo. Como é sua composição de personagens e como você os insere na trama?
FLÁVIA HELENA – Esse livro, Sem açúcar, foi fruto de um projeto contemplado pelo ProAC, edital de incentivo à cultura aqui do estado de São Paulo. Esse projeto previa que os contos deveriam apresentar personagens, de algum modo, deslocados do universo de que fazem parte. Todos tinham que se sentir marginalizados ou, ao menos, desconfortáveis dentro das situações que ocupam. Por isso, a trama e os personagens foram concebidos quase simultaneamente, porque são muito interligados. Para os fins de construção da história, um não poderia existir sem o outro.
O conto Metamorfose, por exemplo, trata de um menino transexual, adolescente, e seu processo de transição. As características dele, por exemplo, o fato de não reconhecer um corpo feminino como seu e o desejo de ter um corpo masculino, são percebidas conforme a ação se desenvolve. O personagem não se apresenta pela descrição, mas é composto à medida que os fatos da narrativa se sucedem.
Outro exemplo que, na minha opinião, evidencia isso é o conto Consciência. O leitor percebe que o protagonista está sofrendo um processo severo de perda da consciência não porque isso é diretamente contado, mas porque se demonstra por meio dos acontecimentos que se apresentam.
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