É madrugada na delegacia da rua de casas e prédios baixos em Oswaldo Cruz. É madrugada na favela mais próxima, onde um garoto é baleado. A madrugada leva a notícia para o rádio do inspetor Leandro, que está na escuta. Naquela madrugada.
Leandro tem o ouvido atento às notícias ruins e o olhar parado na TV, que passa as propagandas do intervalo comercial do filme, sem som. Ele troca para um canal de jornalismo, que mostra um violino. A legenda diz que aquele instrumento fora feito à mão, em 1755. Após anos de procura, a polícia de um país europeu encontrou-o e prendeu o dono atual.
Novo close no violino, que agora brilha à luz, ressaltando a perfeição de suas formas e a qualidade nobre da madeira. Leandro já não ouve a escuta, nem a TV, que continua sem som.
Uma música começa a espalhar-se. É a “Ária na Corda Sol”, que lentamente invade a delegacia, como se fosse água. O som dos violinos não sai do rádio da polícia, nem da TV. Vem da manhã em que a mãe e a avó levaram Leandro ao Municipal para ver a orquestra tocando Bach. Um sábado de sol e nuvem de infância.
Depois do concerto, elas foram com ele a uma famosa casa de doces, a Cavé, e pediram chás e um folheado delicioso para Leandro. A avó deu um beijo em sua testa quando ele terminou de comer o folheado. Elas pagaram a conta e entraram no taxi, sentadas uma de cada lado com ele no meio, no banco de trás. O taxi levou-os de volta para a casa onde moravam.
A mãe de Leandro, e sua avó, já não existem mais. Daqui a umas horas, o garoto baleado na favela também não mais existirá. Daqui a minutos, policiais entrarão de novo aqui, na delegacia. E com eles, talvez, alguns meliantes.
Quando chegar a manhã, Leandro irá para casa, dormir. Os crimes, seus registros com ou sem soluções continuarão existindo, funcionando, como uma máquina que não para, enquanto ele dorme.
Ele voltará a fazer parte dessa máquina, em algumas horas. Mas só depois de acordar, almoçar, tomar banho, ver um pouco de TV, e jantar uma lasanha aquecida no forno de microondas. E, na delegacia, ficará novamente na escuta do rádio, que trará para ele assaltos, furtos, assassinatos, estupros, brigas familiares, guerras entre traficantes, guerras entre a polícia e o tráfico.
Porém, em determinado momento da madrugada, a mãe e a avó vão passar pela delegacia, dar as mãos a ele, sentar-se uma de cada lado, e leva-lo de novo ao Teatro Municipal, onde assistirão e ouvirão, atentos, a “Ária na Corda Sol”, de Johann Sebastian Bach.
Eles seguirão para a casa de doces, onde Leandro vai escolher o melhor folheado da vitrine, e então a avó dará um beijo em sua testa. Um beijo molhado de chá. Um beijo que o garoto da favela também recebeu da avó, mas não sentiu.
E Leandro de novo vai para casa, dormir.
Eduardo Villela nasceu no Rio de Janeiro, em 1979. Seu livro de contos “O Interesse pelas Coisas” foi publicado em 2017 pela Editora Moinhos. Com o conto “Genética”, foi finalista do concurso Brasil em Prosa, do jornal O Globo com a Amazon, em 2015. Tem contos publicados em diversas antologias de autores e participa do coletivo Clube da Leitura, no Rio de Janeiro. Atualmente escreve seu primeiro romance.
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