FERNANDO – Teu livro de poemas é um belo hipertexto onde vemos narratividade, ensaio com matiz filosófica, e ainda uma escrita extremamente cinematográfica. Como foi estruturar cada poema dentro deste escopo temático e de estilo?
FLÁVIA ANDRADE – Meus poemas geralmente não tem um planejamento a priori. O fato de os poemas terem sido organizáveis, de certo modo, por temas foi totalmente acidental. De repente reli todos e vi temas em comum. O único assunto que acabei organizando foi o da relação com a cidade. Os poemas a respeito de São Paulo (a cidade do tempo cão) foram crescendo, se tornando mais e mais numerosos à medida que eu fui percebendo os atravessamentos da cidade nos meus afetos, no meu corpo, nos espaços nada casuais, na pequenez ou amplitude de movimento dos corpos de quem vive aqui. Com exceção dessa temática não tenho um tema ou foco de poesia. Costumo dizer que escrevo pela angústia ou pelo corpo. Há sempre polos opostos, contradições, dialética, o que acaba extravasando na escrita. Eu não tenho pretensão de fazer poemas filosóficos, ou cinematográficos ou psicanalíticos. Mas quem eu sou me traduz na escrita. Os poemas são atravessados por essas experiências que também fazem uma lente nos meus olhos para o mundo que descrevo nos versos.
FERNANDO ANDRADE – Há uma velocidade de ação, que não parece dramática, num sentido até teatral, mais calcada numa cinética de um tipo de tempo do movimento, onde conto e curta-metragem parecem duelar até dentro dos gêneros: cinema e literatura. Queria saber se você acha que estes poemas possuem este tipo de velocidade transcursiva?
FLAVIA ANDRADE – Há quem considere esses poemas extremamente visuais, até mesmo táteis. O tempo do poema é a fuga dos catálogos de gênero. A proposta é de uma insubmissão da escrita. Eu diria que o ritmo do poema é marcado pelo contraste: dos versos e da vida.
FERNANDO ANDRADE – As relações afetivas & sociais estão sempre fora de um casulo. Há uma liberdade por horizontes, onde o alcance é macro para falar de amores, afetos. Esta relação entre o próximo do corpo e um certo “distanciamento” procede em seu discurso poético?
FLÁVIA ANDRADE – Os poemas que versam sobre o desejo acabam sendo muito pessoais porque são inspirados por experiências e desejos reais, por vivências, concretas ou idealizadas, porém minhas, que de algum modo marcam meus afetos. No momento da transformação de sentimento em letra acredito que o eu se dilui, o desejo impessoaliza e às vezes até aquilo que era puramente erotizado se torna mais lírico. Acredito que esse jogo de “perto e longe”, “pessoal e impessoal” é resultado da mágica que a própria poesia faz.
FERNANDO ANDRADE – Desnormatizar a linguagem parece uma linha de sua poética assim como cão é um elemento de afecto interior, deslocando para tempo cão podemos sugestionar para também, mundo cão. Os sentidos se alteram em seus significados. Fale um pouco disso.
FLÁVIA ANDRADE – Sim. Tem razão. Trata-se de tentar desnormatizar tanto quanto possível a linguagem sabendo que os significantes cerceiam demais os afetos. Outras vezes os conteúdos da angústia não acham lugar na letra e ficam então manifestados parcialmente, de modo incompleto. A poesia é uma espécie de metáfora, uma alegoria de nossa incapacidade de viver os afetos na sua plenitude. A escrita se funde ao poeta num certo sentido o que traz alívio por um lado e insatisfação por outro. Porque por mais que a escrita "me seja" ela me limita. Clarice viu e disse sobre isso com uma maestria que nunca vi igual.
Aliás, importante eu registrar: Clarice é minha principal influência, por mais que não seja visível. A respeito do tempo cão é uma referência às disparidades do tempo e do espaço dessa cidade de extremos em constante oposição. A cidade provoca sentimentos ambíguos a depender da hora do dia: durante o dia ela demonstra toda sua desigualdade travestida de possibilidade e à noite ela procura seduzir. A cidade do tempo cão é essa megalópole das megalomanias, das possibilidades: ela traz a ilusão de que o esforço é um caminho para o todo possível. A cidade do tempo cão tem um ritmo cão que abre o caminho ilusório e suga o sangue. Nela, os espaços não são casuais, mas poucos percebem a falta de acaso das divisões dos espaços, a arquitetura nunca é neutra de atravessamentos político-sociais, o que se imprime no concreto dessa cidade que procuro denunciar em meus versos. Ao mesmo tempo que bate, a cidade nos afaga, especialmente à noite, na qual os convites que ela faz seduzem e acariciam. É quase um ritmo de bate e assopra. Por se tratar de ritmos e espaços que nos constroem corporal e subjetivamente me refiro a “tempo cão”. Poderia ser afeto cão a partir desse ritmo que produz uma voracidade que acaba por quase sufocar.
Flávia Andrade nasceu em São Paulo e é apaixonada pelas noites da cidade. Psicóloga, psicanalista e Mestre em Filosofia de formação, sente-se atraída desde cedo por arte, teatro e poesias. Quer colocar em verso aquilo que não pode ser racionalizado pelas vias formas do conhecimento e da compreensão humana. Faz da escrita seu caro divã. Não entende Hilda Hilst, Conceição Evaristo e Clarice Lispector com a razão, mas com os sentidos. Sente-se contemplada pelos sentimentos em letra dos grandes poetas e acredita que escrever poemas é condição de possibilidade da própria vida.
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