por Sebastião Natalio
Jornalista, artista visual
Não vou escrever como crítica porque a crítica literária está bem longe do meu alcance. É preciso muito mais do que ter iniciado leitura aos cinco anos de idade pra ser um crítico literário, tarefa árdua que dispenso. Falo sobre o “Assombro Zen”, livro de Marco Aurélio de Souza, que já li, reli e reviro de vez em quando, naquela de ler na página que se abre – à maneira de ‘leia o salmo tal que você abrir na Bíblia e veja o que ele te diz”.
“Assombro Zen” são como o próprio autor diz, anti-haikais. Relendo-os vejo que o livro diz mais sobre esses tempos, inclua-se a quarentena, do que muitas fake news que se espalham pelas redes sociais. Os poemas que se apresentam nessa obra são uma exposição de naturezas mortas, que nos fazem pensar o cotidiano, algo que o haikai não deseja fazer, aliás, o haikai é o antidesejo, não é transgressor. O desejo é transgressor por natureza.
Já de cara, no primeiro texto, nos vêm cenas várias, uma delas bem viva na nossa memória foi o assassinato do menino João Pedro, 14 anos, dentro de uma casa atingida por 70 balas, não apenas uma bala perdida. O que se segue não foge muito dessa mesma linha. A partir daí, a estratégia do autor dá muito certo, porque o ser humano se sente atraído para dentro desse espelho chamado violência. Traz a lembrança das pessoas aglomeradas em frente às bancas da Boca Maldita, em Curitiba, na segunda pela manhã pra ver, comprar e consumir as notícias do velho “Tribuna” (claro, além das “Bem Boladas”).
A cantiga de roda no “Assombro…” perde a singeleza esperada de uma poesia sobre o tema, quando surgem os ratos se refestelando no fim de uma pelada. Se fosse roteiro de um filme esta obra teria como cenário os morros cariocas, mas também poderia ser em Brasília, onde se queimam mendigos e índios na madrugada. Essas referências aparecem pelos incendiados do X9, os voos das pipas e a fartura da favela, muito embora, próximo de onde moro, escuto quase todas as sextas à noite o pipocar dos foguetes a anunciar um fim de semana “feliz” com a chegada do PIB. O anti-haikai 26 é quase um resumo deste possível filme.
O 38 nos joga neste momento em que estamos em quarentena por causa da pandemia de coronavírus. “Mortes são números que brotam nos jornais” é o último verso do anti-haikai e cabe ao Brasil de mais de 20 mil mortes por conta do Covid-19. É um verdadeiro assombro zen se ainda tivermos alguma empatia com aqueles que perdem a vida e com aqueles que perdem um ente querido.
Os anti-haikais de Marco Aurélio estão prontos pra serem projetados nas paredes dos edifícios das cidades, feito avisos. São oráculos nebulosos.
“Na saída da balada
Um sem teto uiva na madrugada
: Jovens de bem limpam marquises”
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