Marco Antonio Bin: Mora em São Paulo, é professor universitário e escritor. Doutor em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo. Publicou A Paixão Inútil (Patuá, 2019); e em coautoria com Mônica Nunes a coletânea de -contos Histórias Invisíveis (Horizonte/ProAC, 2011). É membro do Grupo de Pesquisa em Memória, Comunicação e Consumo (MNEMON), do PPGCOM ESPM-SP.
O tempo em Atar
Nada, senão um punhado de edificações que se intercalam com os vazios desolados, espaços por onde vagam sombras perdidas, que se abrigam preguiçosamente das jornadas ensolaradas, de brilho ofuscante. Do horizonte avermelhado se aconchega a noite serena e o que era silêncio diurno torna-se noturno, avesso à presença humana. Um ponto perdido no meio do percurso, um lugar que se insinua contra qualquer previsão e se espraia em meio a um espaço geográfico esquecido e indefinido. Atar resiste e faz com que nossa existência humana faça sentido. De que substância se alimenta sua existência?
Para o estrangeiro que não sabe desvelar a sombra de seus passos, Atar não passa de um acidente ruminado no meio do deserto, onde a imaginação e sua ausência jamais será lamentada. De ora em vez, um movimento soturno perpassa a paisagem, a passagem de uma caravana ou a conclamação do muezim mobiliza a placidez de sua realidade abandonada.
Contra todas as expectativas, prevalece o sibilar das vozes sorrateiras que se abrigam sob a cúpula celeste, o estalar de uma infinidade de pontinhos brilhantes e os rastros dos meteoritos cadentes mais fulgurantes. Aqui e ali, o blaterar dos camelos como uivos que demarcam o princípio do deserto, e depois o absoluto indizível. Pela manhã, o retorno do tempo milenar com as expressões humanas, e aos poucos o suor a escorrer sob as túnicas escuras, os corpos taciturnos a esgueirar-se pelas ruas arenosas e pelos recantos labirínticos. O mercado atrai um contingente homogêneo que rompe com o isolamento e animam os pequenos encontros. O primeiro anúncio da fome não tarda, ouve-se um roçar surdo de pratos e colheres de argila passar de mão em mão, a servir o mingau com farata preparados pelas hábeis mãos femininas. O tempo se restabelece para que o silêncio sucumba ao estalar das línguas, o murmúrio a penetrar como areia fina e se manifestar sem pretensões. Ao cair da tarde, retorna o jogo de luz e sombras que redesenham becos de desenhos intrincados, mosaicos encrustados em adobe.
O vento escapa do deserto apenas para anunciar a chuvarada imprevista, surpreendente, e logo se aquieta, a lavar a alma empoeirada. E antes de cair a noite, emergem os sons agora de vozes moduladas, que ecoam pelas paredes íntimas, versos melódicos que se fortalecem como a derradeira oração do dia, súplica pela esperança de um novo dia. Sobrevém uma vez mais o crepúsculo retinto que convida ao repouso sobre a manta de algodão, estendida no piso sabuloso de cada casebre. As portas se fecham até o amanhecer, quando então o ciclo da vida recomeça e os novos rumores ecoarão na cena urbana, feitos por homens e mulheres que se exaurem sob o sol em busca de seus afazeres, a anunciar outra jornada imersa em signos sacralizados por olhares, gestuais e palavras. Em Atar, o tempo se renova assim como a singeleza se alimenta no coração do sábio.
Prosa poética, plena de aliterações saborosas. Imagens sensuais atravessam os sons.