Fernando Andrade: Você escolheu um título e uma palavra extremamente poética sobre o próprio ato da criação. Entre o vazio e a escrita temos um triz de pulsão-potência. Entre o silêncio do que dizer, a rasura, e a própria linguagem exposta, o triz que pode tanto ser o desvão, como a lacuna. Por que escolheu esta palavra tão bonita e cheia de sentidos?
Rachel Ventura Rabello: Essa palavra surgiu como surgiram todas as outras: no próprio ato da escrita, enquanto escrevia o poema que leva esse título. Nesse poema, o eu é decifrado entre a reserva e a entrega, num átimo, à beira. Essa questão sempre me foi cara, a dificuldade de se entregar, de ficar “sempre a um passo da total entrega”, como diz um soneto do Paulo César Pinheiro. Diversos poemas no livro contemplam essa definição da palavra triz. Enquanto concebia o livro, reparei que alguns poemas eram despretensiosos – o que contempla a definição menos usual da palavra triz “pequena diferença, quase nada”. Mas a acepção mais conhecida da palavra é dentro da expressão “por um triz” – e diversos poemas do livro dialogam com esse campo semântico. Por um triz, por uma linha. Susanna Kruger (atriz e diretora de teatro) me disse certa vez que os gregos acreditavam que existia uma linha invisível que separava deuses e mortais – e que os artistas eram os únicos mortais capazes de cruzá-la e voltar (os demais, sem conseguir retornar, enlouqueciam). Assim, criar seria cruzar essa linha invisível. É perigoso – é preciso coragem. Entre o que se quer dizer e o que se diz – uma fissura. Ao atravessá-la, descobrimos que não há nada por dizer e que a escrita só nasce a partir do próprio ato de escrever. Para saber o que queremos dizer é preciso dizer, dizê-lo. E eu disse. Foi assim que a palavra surgiu.
Fernando Andrade: O livro me revelou uma poeta atenta à relação do corpo e suas latências perante à existência em seus devaneios e singularidades do acontecimento poético. Como foi o desenho de suas imagens, que tecem certos usos constantes de palavras-imagens e sentimentos que alinham toda a tessitura do livro? Você pensou num fio constitutivo para seu livro?
Rachel Ventura Rabello: Como disse, as imagens e sentimentos surgiram no próprio ato da escrita. Começo sempre por uma palavra ou uma frase – e construo o poema a partir dela. O fio constitutivo surgiu conforme eu escrevia. Quando reparei que os poemas que vinha escrevendo versavam sobre essas acepções da palavra triz, mas com ângulos ou imagens distintas, percebi que tinha o começo de um livro. A partir daí, passei a escrever conscientemente dentro desse campo semântico da palavra triz.
Fernando Andrade: O amor nos seus poemas não tem uma carnalidade nem tão romântica, não é algo derramado. Você consegue expressá-lo com uma alta dose de experiência, como se o corpo fosse esta encadernação – e aqui o uso da pele como potência caligráfica, de se deixar imprimir tatos, afetos e gozos. Como foi misturar o amor nestas cartografias?
Rachel Ventura Rabello: O amor é meu tropo poético – e o amor é corpo. “Sentir é questão de pele”, já dizia Gilberto Gil. Muitas questões humanas podem ser abordadas por trás dos véus do discurso amoroso: a morte, o eu, o outro, a impermanência da vida, “o universo numa casca de noz”… Um dos níveis de leitura do que escrevo é o amor, mas há sempre outras camadas. Isso sempre foi bem claro para mim, uso o amor como mote na escrita – e na vida.
Fernando Andrade: A potência do acontecimento tanto sensível como linguagem gráfica se dá não pelo acúmulo de dizível. O sentido no poema não deve ser excedido da sua própria experiência táctil da página. O triz é talvez esta fagulha do que se escapou por um triz por fazer pleno sentido?
Rachel Ventura Rabello: Triz é ínfimo, é um fio de cabelo, uma agulha no palheiro, um grão de areia no deserto… O que escapa por um triz é o próprio triz, que não sei se faz ou tem pleno sentido… a meu ver, não há sentido, mas sentidos… é múltiplo, sempre… Por essa perspectiva, a expectativa por um sentido pleno seria sempre frustrada, escapando por um triz…
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