Listas
Quase todos os meus amigos de infância morreram.
Celeste não morreu,
mas teve um filho que só viveu três meses,
e isso de alguma maneira a matou.
O vizinho da rua de cima, de média idade,
em cuja cabeça desabou um caramanchão,
esse sim, morreu.
A menina mais famosa da cidade,
a quem chamavam Dadeira,
não era minha amiga e não morreu por um triz:
o último rapaz, dos quinze que a estupraram, teve dó e interrompeu a farra.
Laércio, o que trabalhava mais de quinze horas por dia numa mineradora,
de quem há tempos não via o rosto,
hoje me contaram: morreu no estouro da barragem,
com lama acima do pescoço.
A única namorada que tive no ginásio não está morta ainda,
mas lembro-me de ter lido no Facebook que ela entrou em coma irreversível
e que todos deveriam rezar por ela.
A praça da cidade da minha infância,
que ocupava um quarteirão inteiro e tinha árvores perfumosas,
desapareceu: deu lugar a um prédio de apartamentos,
com duas vagas de garagem para cada um.
Antes, viver não era o mesmo que ter medo.
Benjamin Button viveu a vida ao contrário.
Nós não: somos o contrário de Benjamin Button.
Envelhecemos.
Temos medo.
E fazemos listas.
Debaixo deste céu há escuridão
Estava há muito tempo desempregado, tinha filhos. Aceitou.
Ele não podia ficar sem emprego, tinha filhos. Aceitou.
Ele precisava trabalhar, tinha filhos. Aceitou.
Disseram-lhe: Não serve para nada.
A tristeza profundíssima
O melhor poeta da minha geração
foi internado num hospital psiquiátrico.
As enfermeiras, armadas de seringas curativas,
atormentam-no.
A cada vez que tem um verso na ponta da língua,
elas o imobilizam para que engula um comprimido
— e o verso junto.
O melhor cantor da minha geração
conseguiu emprego num call center
no turno da noite.
Ele segue o script dado pelo supervisor
e sempre atende às ligações
como se estivesse cantando.
Do outro lado da linha
o cliente furioso não percebe
o Dó Maior cheio de tristeza que sai de sua boca
quando diz “Vamos estar providenciando o seu pedido”.
O homem mais beato da minha geração
trabalha de forma clandestina matando jacarés.
O couro dos bichos é enviado por barco para o Senegal.
Também por barco chega o pagamento,
e por isso atrasa tanto, dizem os chefes.
O melhor matemático da minha geração,
quase morto de fome,
decidiu ser coach depois de analisar
as estatísticas e as probabilidades.
Outro dia sussurrou-me ao ouvido: “O valor do Pi está errado”.
O melhor cozinheiro da minha geração
espreme laranjas e vende churrasquinho
num quiosque de praia.
A mais bela da minha geração
organiza a fila na entrada do museu.
Ainda tem o sorriso bonito,
apesar dos dentes cariados.
O melhor comediante da minha geração
morreu ontem em absoluta miséria:
seu corpo ossudo, a dentadura triste
e o rosto num esgar de pânico e solidão
foram bem recebidos pela Morte,
que gargalhou.
Mário Baggio é jornalista, escritor e blogueiro. Mantém o blog www.homemdepalavra.com.br, em que divulga diariamente sua produção literária. Publicou 3 livros de contos: “A (extra)ordinária vida real” (Autografia, 2016), “A mãe e o filho da mãe e outros contos” (Autografia, 2017) e “Espantos para uso diário” (Coralina, 2019). Publicou textos em várias revistas eletrônicas, entre elas Vício Velho, Diversos Afins, Gueto, LiteraturaBr, Fluxo, Ruído Manifesto, Escrita Droide e Subversa. Participou da AntologiaRuínas, da Editora Patuá. Participou da Antologia Fragua de Preces, editada em espanhol, ao lado de centenas de poetas latino-americanos. Prepara dois novos volumes para 2020, um de poesia e outro de contos.