Três poemas de Pedro Mohallem

Pedro Mohallem - Três poemas de Pedro Mohallem

Pedro Mohallem, 24, é mineiro e mora em São Paulo. Mestrando em Letras pela Universidade de São Paulo, escreve e traduz poesia. Autor de Véspera; Debris (Patuá, 2019).

 

 

A PRIMEIRA MANHÃ

Uma nova palavra
germina entre os escombros.
Ainda não sabemos
seu destino de verbo,
mas seu significante
cada vez mais arguto
triunfa sobre a estática
daninha do discurso.

A mudez pavimenta
seu solo; todavia,
embrião de ruínas,
é nela que se lavra
e é justamente dela
que reclama um sentido
superior à linguagem.

Convém gestá-la, embora
tardia a muitas vozes
soterradas na noite,
e embora as poucas fibras
que restem, por receio,
custem a articular
seu máximo esplendor.

Talvez não amanheça
— Uma estrela de sangue
aurora o céu da boca.

 

O DIA DAS MÃES

I. O dia fundado

O sol do meio-dia vela por quem foge
miserável e grávida, que foge
do gume da cimitarra:
o velho aristocrata seu marido,
velho já de muitos anos, é morto enfim.
Para que a fortuna permaneça entre os seus,
fortuna que lhes é devida,
deliberou-se que matassem também a esposa,
pobre nossa mãe, sem nome e sem família,
sombra de medo e sal na estatuária do tempo.

 

II. O dia escrito

O sol do meio-dia veste os cedros do Líbano.
O sangue e o chumbo afofam seus desertos milenares.
Minha mãe, pressentindo o ataque,
cava buracos no solo às pressas:
os franceses arrombariam nossas portas,
e nada encontrariam;
inspecionariam nossos corpos,
e nada encontrariam.
Também nós, dali em diante,
não mais nos encontraríamos,
a carne salgada para sempre à sombra
dos inamovíveis cedros do Líbano.

 

III. O dia passado

O sol do meio-dia enquista-se no ventre
de ouro das montanhas tropicais
e convida ao luxo de uma refeição à mesa:
carne salgada e amaciada para treze bocas,
bocas que jamais aprenderiam a sorrir e a amar
senão à sombra. As crianças correm, os adultos comem
numa orquestração de talheres.
O muro desta velha casa era mais baixo,
mas as folhas da parreira no quintal
maquiavam o rubor de uva
nos olhos de minha mãe.

 

IV. O dia vivido

O sol do meio-dia chispa os olhos
de minha mãe sentada no degrau,
contida em si;
a gata equilibra-se no muro
a dez metros ou mais da própria sombra,
a quinze da sombra da lichia nua de flores,
e talvez a vinte e cinco das sombras em erosão
nos braços de argila e bronze de minha mãe que ri
— nas marcas de expressão, raízes profundas —
roça nos cacos de vidro e no arame farpado
ouvindo o tilintar salgado
das latas de alumínio
e desce ao encontro da mulher.

 

SAGRAÇÃO

Você me diz
que a árvore de nosso caminho,
diametral e futura, como nós enraizada
em algum minério perene, maciço e incerto,
secou.

Não tombou nem virou cinza,
a árvore de nosso caminho;
estando sem estar,
seus braços retorcidos tentam agarrar
algo que se perdeu e não vimos.

Ainda há tantas árvores, você diz,
e tantas outras sombras e caminhos
e tantos troncos secos que se ocultam
e penumbras que o sol toma de assalto
e trilhos sem pedestres nem palavras.
Mas, se queres um pouco de esperança,
germinando, talvez, a herdeira a vingue
e, firmada no chão da primavera,
traga entre os ramos a memória em flor.

Aceito, quieto,
o que você me oferta
mesmo sabendo-o incapaz de abrandar
todas essas raízes.
Sem mais a dizer, fechamos os olhos,
e eis que um tumulto revolve o calcário de que somos feitos:

anjo ou memória, recusa em brasa,
a árvore de nosso caminho distingue-se na turvação,
dedos ardentes dominando o fogo.

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