BONECA COME-COME
Foi ao mercadinho e diante de si estava o Composto 1080, um raticida altamente tóxico e, segundo havia lido no jornal, sem antídoto existente. Não havia antídoto ou salvação no mercado para aquele veneno. Só havia ele ali parado no mercadinho diante da prateleira com o Composto 1080, ideal para matar ratos e pessoas. E de olhos fixos no veneno, ele pensou estar ali por mero impulso, não era assassino, e sim homem de bom grado e coração, funcionário público concursado, alto, inteligente, dono de juízo. Pensariam e falariam atrocidades, caso descobrissem os segredos mais grotescos de seu coração que, no mercadinho, se escondia dentro de uma caverna úmida, cheia de morcegos. Fariam dele mulher na cadeia caso fosse preso por envenenar alguém? O chamariam de Priscila com os joelhos e as palmas das mãos sobre o chão imundo, enquanto seria enrabado pelos outros presos também assassinos e hipócritas? Piscou os olhos três vezes, suspirou, pôs as mãos na cintura, suspirou outra vez. O mercadinho era bem iluminado e podíamos, caso fossemos observadores natos, perceber o encanto dos olhos fixos no rótulo do Composto 1080, como se ele fosse uma menina no corpo de um menino a desejar uma boneca come-come na vitrine. Mas era apenas uma boneca e bonecas não possuídas não matam pessoas. Aí ele estendeu a mão e tocou na embalagem contendo a substância destrutiva e de venda ilegal. O desejo de matar outra pessoa. Mas de repente a boneca deu uma gargalhada e disse: oi, vamos brincar?
Antônio LaCarne é cearense, nasceu em 1983. É autor de “Salão Chinês” (Patuá, 2014), “Todos os poemas são loucos” (Gueto Editorial, 2017). Participou das coletâneas “A Polêmica Vida do Amor” (Oito e Meio, 2011), “A Nossos Pés” (7Letras, 2017) e “Golpe: antologia-manifesto (Nosotros Editorial, 2017). Seus textos estão presentes em revistas e suplementos literários, além de ter poemas publicados na Colômbia.
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