ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor Carvalho Neto

 

PEDRO ANSELMO PENALUX 2020 - ENTREVISTA | Fernando Andrade entrevista o escritor Carvalho Neto

 

 

 

Fernando Andrade: O narrador Gregório narra num fluxo sem cortes e sem algum tipo de norma repressiva. Como foi construir o jorro de linguagem em um personagem que tem algum tipo de surto psicótico em si?

Carvalho Neto: Gregório é um personagem sem amarras. Não tem esposa nem filhos, cedo abandonou a casa do pai, não tem emprego fixo, viaja o país sem um destino certo nem um pouso pra chamar de seu. Um personagem assim não poderia ter outra forma mais adequada de narração a não ser a livre, sem regras rígidas de escrita. Esse jorro de linguagem foi pensado justamente como representação do estado de espírito tanto de Gregório quanto dos demais personagens do livro, afinal, estamos em uma ala psiquiátrica e uma alameda bem peculiar, para dizer o mínimo sobre ela. Como o surto psicótico de Gregório aparece — ou se manifesta mais claramente — quando ele retorna à casa do pai, era preciso mergulhar em técnicas de linguagem contínua para representar esse momento; mesmo nos flashbacks e no flashforward, a narração é transmitida sob esse efeito. Não uso o ponto e vírgula, nem o ponto de seguimento, dispenso muitas vezes a própria vírgula, os diálogos são incorporados ao parágrafo e sem delimitações gráficas; além disso, lanço mão da conhecida técnica do fluxo de consciência em determinados episódios. São as mentes aceleradas e não lineares que compõem a história. Depois de cada sessão dessas escritas, geralmente saía do leptop ainda tateando a minha realidade, tentando me situar de uma forma mais cadenciada, menos célere, naquilo que precisava fazer no restante do dia.

 

Fernando Andrade: Você junta ao texto muitas referências de citações a canções quase como um mosaico onde além de representar um real; há uma intenção de mediá-lo com a arte, ou uma possível sublimação de tudo. Como foi juntar arte e realidade na vivência de Gregório?

Carvalho Neto: O uso de referências, intertextualidade, é uma marca que normalmente aparece em meus textos, em especial nos mais longos. Adoro esse recurso. O texto que dialoga. Literatura, cinema e canções são as minhas fontes diletas. Gregório tem uma galeria musical interessante de ser observada. Rock internacional é sua preferência de fato, e ele compõe o estilo clássico do imaginário universal porque tem uma identidade com esse tipo de música mesmo. Caveira cuspindo fogo no braço, camiseta descolada e calça jeans surrada, uso de maconha, e um jeitão meio descompromissado com a seriedade da vida. As canções escolhidas não são aleatórias, elas se encaixam em cada contexto exibido no livro. Queen, Scorpions, Rolling Stones e Chic não só compõem a cena, mas também estabelecem conexões da vida de Gregório: seu retorno, o sexo, o desfecho da história. Há outras referências musicais no enredo, no entanto, ou entram como o contraponto do que Gregório admira — Roberto Carlos e Paulo Sérgio são exemplos dessa parte —, ou são tiradas irônicas do narrador em segunda pessoa — Caetano Veloso é a predileção aqui.   

 

Fernando Andrade: O texto dá uma sensação ao leitor daquele livro do Foucault, Vigiar e punir. Um controle passa na latência das ações e até no estilo da escrita. Uma escrita que se normatize em pulsão de controle, você acha que é possível realizá-la na ficção?

Carvalho Neto: Se for possível, devemos lutar sem trégua contra ela. As ideias de normatizar e controlar, seja o que for, e especialmente a escrita, são sempre perigosas. A arte é o campo da liberdade, da rebeldia, da criação; e toda criação deve ser livre. É importante esclarecermos alguns pontos aqui. Realmente existe uma ligeira vinculação com a ideia do Foucault, mas nada acadêmico ou programático. Li Foucault no meu mestrado, é algo fascinante, e sendo ele a grande referência da contemporaneidade nesse assunto — poder, controle —, chego a usar certos elementos do autor, como isolamento medieval para os pacientes da ala psiquiátricadesordem de comportamento e espírito. Além disso, podemos fazer, no máximo, uma livre associação do tema do meu livro com a noção de vigiar e punir foucaultiana, pois a história, ou seja, o conteúdo exposto para reflexão, gira em torno do observar e controlar. São exemplos disso o paciente gigante, julgado pela sociedade devido à sua cor e condição social; o drogado e suas inesperadas atitudes; a infeliz trajetória da menina abandonada na porta do supermercado ao nascer; o alienado crônico, empecilho e vergonha para sua família. Esse controle na latência das ações é algo importante de ser notado a partir de dois aspectos principais. O primeiro se refere ao personagem principal. Gregório — o acordado, o alerta — é o vigilante insone de uma ala psiquiátrica; há sempre essa tensão pairando no ar causada pelo imponderável, em seu trabalho, ou em sua casa. O outro aspecto é gerado pela presença também de um narrador em segunda pessoa. O próprio Gregório, nesse instante, sai da posição de comando, dada a ele enquanto personagem principal e narrador, e torna-se o vigiado, apesar de não saber disso, pois não interage com essa voz externa que auxilia na narração da história. Somado a isso, há o uso do imperativo, comum a esse tipo de narrador, algo que passa a sensação de controle, de vigilância. Esses são recursos escolhidos de forma tal que combinem com a atmosfera da obra. Mas ressalto, tudo isso age como constructo de reflexão; e o estilo da escrita entra como respaldo na medida que busca se livrar das amarras de determinadas regras formais.

 

Fernando Andrade: O humor percorre muitas partes do livro. Brincadeiras com a capivara, a referência à semelhança do pai com o Wood Allen. Como foi trabalhar o humor num livro que parece tão tenso e angustiante? 

Carvalho Neto: O Raduan Nassar, em uma das suas raríssimas entrevistas sobre literatura, afirma que “a boa prosa tenha sido sempre a poética”. Verdade. Concordo em absoluto. Tenho um livro que vai nessa linha, e gosto demais dele. Mas acrescentaria, como forma de possibilidade de boa ficção, o humor. É só lembrarmos do Machado de Assis, um mestre nessa arte. Memórias Póstumas de Brás Cubas sempre me fascinou. A ironia, o sarcasmo e as tiradas cômicas são marcas também da minha escrita. No Plástico bolha, uma novela, trago uma mistura que me atrai bastante: poesia, loucura e humor. Curioso você fazer essa observação para o Quando nos observam. Meu revisor fez essa mesma análise. Como sou amigo dele há muito tempo, falou que iria ler primeiro o livro na condição de leitor, quer dizer, se envolvendo na recepção da história. Daí disse como foi importante passar de momentos aflitivos e dolorosos, fixados em sua mente por vários dias, a momentos de humor e descontração nesses episódios com o pai — uma figura à parte — e a capivara, por exemplo. Por mais pesada, tensa, que seja a história, acredito ser significativo também esse instante de alívio para o leitor. Um respiro após o riso sempre será bem-vindo a qualquer tipo de história literária.   

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