Prosa poética | Do livro “Caligrafia selvagem”, de Beatriz Aquino

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Beatriz Aquino é formada em Publicidade e Propaganda, é atriz de teatro, dramaturga e ensaísta. Tem publicados os livros: Apneia (romance), A Savana e Eu (crônicas), Anne B. – Sobre a Delicadeza da forma (romance) e Caligrafia Selvagem (prosa poética). Vive atualmente em Portugal.

 

 

Também eu sou como um náufrago a intuir caminhos,
e a pensar adivinhar-te no bojo de algum barco que se aproxima
como um exausto viajante em busca do porto dos meus olhos,
olhos que te acolheriam como um abrigo em meio à chuva,
como o sol que rasga a densa neblina
e mostra as cores e texturas de todas as planícies.

Também eu reinvento estradas,
traço rotas antes inexistentes.
As Índias e suas especiarias não são nada
diante do mundo que construo e penso existir.
Istambul em meio ao fog, as muralhas chinesas,
os jardins suspensos e os Taj Mahals,
tudo crio para te ofertar
assim como faz um devoto
aos pés de quem escolheu para amar.

Mas sei que invento também monstros misteriosos
que se escondem em lagos profundos.
Assassinos em série,
desses que se aproveitam das sombras que os medos fazem
e da letargia dos que desistem antes do bom alvorecer.
Mas veja que eles nem sempre vencem.
Embora reapareçam com seus rostos pálidos e cínicos
a nos repetir mantras antigos,
eles nem sempre vencem.

Há um dia de sol para cada dois de nós nesse mundo.
Quatro mãos moldam a argila das coisas infinitas.
É bom ser farol de olhos que flutuam sozinhos nesse oceano frio.
É bom encontrar o bom porto onde teus pés pisam com leveza e alegria.

É espanto o que experimento, decerto.
Mas vou onde me queres.
Tuas mãos me indicam o horizonte.
Lugar onde o sol é vasto e beija todas as cercanias,
onde pequenos de língua estrangeira
se aninham no colo das mães no café da manhã,
onde pais se enternecem com isso,
onde se ouve os pássaros e o rugir dos tigres
Onde o crepúsculo dos dias não chega…

 

*****

Era noite e todos
dormiam.
Dormiam as carpas em suas casas de aluguéis,
inquilinas coloridas do divino.

Dormiam todos.
Imóveis.
A respiração branda como a de uma criança.
Tudo era silêncio e sereno.
Espanto contido e reflexão.

E foram muitas noites assim.
As carpas, as lesmas,
o rim dos homens,
a ansiedade do carteiro,
todos descansavam da pressa do mundo.

Era noite.
E um sol tímido e mudo
nascia por trás da cortina do medo…

 

******

Negras são as noites e as damas que por elas transitam. Amélias, Camélias,
Justinas, Consoladoras, Marias… Deitam o seu perfume no vento e embriagam
os pobres homens, os trabalhadores do Mercado, os imberbes à janela do
internato. Acenam seus gestos rubros, rubras são suas carnes comidas pela
volúpia da fome, o desejo que não se segrega à alcova e desce as ruas, as
alamedas, se esparrama pelos meios fios, transborda pelas bocas de lobo.

A noite é o dia do desejo. E essas mulheres, incenso dos homens, queimam
aflitas. Outras, desavisadas, perdem os dentes, os brios, as vontades, os
cabelos. Velhas megeras se tornam, ávidas pelo contato das moedas nos seios
fartos ou ressequidos.

Vez ou outra, quando iniciam a negra jornada, um ou outro anjo ali cai, virgem
do pecado maior, vítima da miséria, se entrega ao primeiro e mais ávido
pagante e sangra por cima da túnica de ternura que ainda veste. Depois, os
passos no trottoir, o barulho dos tamancos baratos comprados às pressas
naquele mesmo lugar de dia, onde o sol machuca a tez dessas mariposas e os
homens fingem não conhecê-las. Ou conhecê-las muito. O que é pior.

No entanto, apesar de múltiplas, não se vê o rosto dessas mulheres, parecem
todas disformes, embora belas. Decerto que é o mesmo perfume da noite que
deformam suas feições e as tornam espécies de espectros cubistas.

E há um canto também, uma música invisível aos ouvidos, insensível ao
coração, que não se sabe ser de lamento ou de morte. Mas cantam as
Amélias, as Justinas e as Marias. Ou pelo menos murmuram em uníssono no
ranger das molas das velhas camas, gastando a pele das costas na fricção de
suas existências sem sentido. Células perdidas, Coralinas de ninguém.

Cantem Marias, cantem, pois o grande dia não vem…

 

****

Tento decifrar a tarde que cai em teus olhos
E descobrir se enquanto sorves da tua janela o profundo azul do céu de Lisboa,
tu imaginas o quão estranho e divino é isso que estamos tecendo.

Tento também interpretar a noite que mora neles.
E adivinhar o quanto já usaste do reservatório de lágrimas que eles carregam.

É certo que amo do teu sorriso, mas é no frágil e no escuro que vemos mais.
O homem se mostra tão pouco.
E não conta sobre os precipícios em que caiu, se há sangue em suas mãos ou
cicatrizes injustas.

Sei que és forte e próspero. Mas é o menino por trás do terno que busco.
Sua bravura e nobreza, os sonhos bonitos que escreveu nas árvores da rua ou
em códigos nos muros da escola.
Quantas meninas amou e se o rosto delas ainda se faz mosaico em suas
retinas.

Desejo, decerto, o homem em teu corpo, mas busco mesmo o éter da tua alma,
o rouco da tua garganta quando emocionada e claro, essa tua voz que afaga
tudo…

 

****

Quisera eu saber conter a lascívia dos acontecimentos,
domar a crina selvagem das circunstâncias.

Brinco de mestra das horas,
escrevo cartas, decretos, poemas…
Algo que explique ou catalogue o cio inexplicável da vida.

Poderia contar amores nos dedos de uma das mãos,
e nos da outra, contabilizar desastres.
E é o que faço. Alinhavo quedas, bordo perdas,
faço um ramo de flor por onde passou a faca,
arremato por cima, um broche herdado da avó…

Essa coisa de poesia é brincar de Chronos,
fazer o trem dos sentidos ir e voltar
e com isso cavar feridas antigas, jogar sal em cicatrizes,
sorver, do corte já fechado, o último sumo de sentido.
Ou quando tudo corre bem,
sentir novamente o gosto do beijo que se alojou
nas frestas do coração.

Isso tudo consigo. Com louvor até.
Mas conter ou me antecipar aos acontecimentos, não alcanço êxito.
Não mesmo.
A cigana é tão vítima das cartas quanto qualquer um de nós…

Esse posto de expectante me exaspera.
Quero mesmo é redesenhar as córneas do Cristo,
entender em suas formas, o segredo de amar.
Mas quando diante dele, choro e penitencio como qualquer outra.
Burra, entregue, criança…

Deve ser assim que se chega e se vai do altar da vida.
Os afrescos e vitrais girando em carrossel
e você não sabe se é o rebobinar da tua existência
ou se é a roda do futuro apostando teus passos no mundo.

Aqui nessa Terra,
chega-se e vai-se tão nu
e tão ingênuo quanto um filhote de cordeiro.
Ou qualquer outra cria que nos agrade os olhos.
Tanto o resmungar da velhice quanto o choro do recém nascido trazem
senão o mais profundo mistério e espanto.

Quisera eu saber conter a lascívia dos acontecimentos…

 

****

Acordo aflita nesse dia de nuvens.
– o cinza adere bem aos pensamentos –
Remexo gavetas, dobro meias, rasgo papéis.
É a reinvenção de mim mesma que busco.
Alguma ponte entre esse eu que desconheço e o mundo prático.
Um aterro para apagar esses mil quilômetros de abismo entre mim e o viável.

Ando cansada das sombras que meus medos fazem.
Das frestas que as minhas deficiências deixam,
frestas por onde entra um ar gelado
que deita um beijo de morte em tudo que é colorido.

Não sei nada sobre amores.
Eles caem das minhas mãos como gotas em dia de chuva pesada.
E os vejo desfilar orgulhosos pelos córregos que se formam na calçada
e indo parar no rio caudaloso das minhas memórias.

Ontem pedi ao Grande Homem, ao Grande Mestre,
que me desse um alívio, um aditivo.
Algo que me tornasse grande o suficiente para alcançar as prateleiras dos
meus sonhos
e ali transitar entre eles como todos os outros seres humanos,
que temem, que choram, que esperneiam, mas que permanecem ali.

Estou exausta desse meu ar de queda,
desse meu olhar de abismo.
Não há mão que sustente ou eleve essa pequena criança que sou.
E para essa criança, é sempre o momento entre o descuido do cervo
e o gatilho do caçador.
– e eu sou um alvo tão fácil… –

Desconfio que não haverá o grande dia.
O dia onde entre trombetas douradas se anunciará para mim
a chegada do amor.
O dia de paz onde quatro retinas se entendam,
onde vinte dedos se entrelaçem,
onde dois corações acertem o compasso,
onde apenas dois corpos bastem…
O dia onde pousaremos finalmente os telescópios e os mapas de busca.

E confesso não saber o que fazer com essa quase constatação.
Deveria ser simples.
Deveria ser óbvio e de direito,
mas parece que um deus amargo nos desenha planos mais amplos.
Nos quer poetas, sensíveis, humanos.

O exercício daquilo que pensamos amor serve apenas para nos arrancar a
pele.
Esse deus gosta de nos ver trêmulos e febris em plena chuva.

Deve ser ali o momento da nossa redenção.
Deve ser essa a nossa hora mais bonita.
Sozinhos, no escuro, falando línguas que o outro não entende,
buscando algo que não se pode alcançar.

Sim, o amor é apenas um grande tubo de ensaio manuseado pelas mãos
invisíveis das circunstâncias.
Onde nós, infantes e desavisados, aprendemos a imitar o eterno
gesto das estátuas dos anjos…

 

****

O pesado verbo da ignorância.

Um homem louco dita regras na televisão. E uma turba obediente e insana grita
palavras de ordem. Me faz lembrar Bauhaus tomada, me faz lembrar Roma sob
as chamas ou a República de Salò, onde morei por alguns meses, com seus
jardins assustadoramente simétricos e suas organizadíssimas construções. A
turba furiosa me lembra os anos sessenta, os cassetetes dos soldados na
cabeça dos estudantes, os ratos invadindo o corpo das mulheres, a tortura
constitucionalizada, aquele delegado do DOPS fumando um cigarro e
decidindo o destino de rapazes imberbes, escolhendo qual mãe iria chorar de
desespero aquela noite.

Me pergunto que filme é esse que não param de rebobinar. Se somos mesmo
essa reedição grotesca onde fanáticos por sangue e ordem fundam clubes.
Clubes disfarçados de igrejas. A Igreja Universal, o Reino de… É tudo tão
grandioso. O homem louco quer ir longe. O homem na tv, com sua cabeça de
leão vaidoso, esbraveja e diz absurdos, e a turba ri. Ri, aplaude. Nem sabe que
morre a cada aplauso, nem sabe que mata em si o amor próprio e mata no
outro qualquer possibilidade de democracia, mas ri e aplaude. Nossos heróis
foram mortos e tantos outros suicidaram-se de corrupção. Não há ninguém
além do homem na tv, que enterra corpos na surdina, que leva sua voz até os
microfones das igrejas, que faz do seu plenário um templo, que vende fé aos
miseráveis, coisa pouca e mínima, mas essencial a sanidade da alma.

O homem que vende antídotos e milagres me assusta, decerto. Mas o que
assusta mais é a turba cega, surda, sedenta. Nero, Mussolini e Hitler sem essa
multidão guiada, não seriam nada mais que homens. Homens bem frágeis até.
Com seus problemas de auto estima, com seus traumas de infância, seus
Complexos de Édipo, suas dificuldades de ereção. Esses homens, com suas
genitálias sutis carregando enormes fuzis para disfarçarem o medo do ridículo
seriam personagens mambembes, caricaturas. Riríamos deles, lhes
atiraríamos tomates não fosse a turba que projeta e vê com tanta definição
nessas criaturas, a sua própria loucura.
Seria fácil cuidar do homem na tv. Encontrar-lhe um hospício decente ou um
circo para que ele se apresentasse e fosse feliz. Mas uma turba não se
gerencia assim tão fácil. Ela se esconde atrás do rosto plácido do leiteiro, do
olhar paciente do taxista, do ar gentil do banqueiro, da bondosa senhora que
alimenta os pássaros na praça, mas que sangraria um ser humano pela
garganta caso esse ameaçasse a gorda pensão de seu falecido marido militar.
A turba enlouquecida está nas retinas do pastor milionário, mora entre os lábios
do senador vendido, se aloja nas pastas dos jovens deputados que ainda
titubeiam o passo.
A turba insana está dentro de casa, no discurso católico-purista da mãe, nos
comentários machistas do pai, na mão do rapaz que se levanta contra a
namorada e que a mata se for preciso, caso seja contrariado. A turba
enlouquecida está por toda parte, tão disponível e de fácil acesso quanto o
sonho da padaria, quanto o pão que sai do forno todos os dias.

A turba enlouquecida, essa que elege ditadores e que para eles levantam
estátuas, que os chamam de messias e mito, e que diz em alto e bom som que
os fins justificam os meios ao ouvir do homem na tv que ladrão bom é ladrão
morto, somos nós…

 

*****

Tudo o que sonho, sonho moído e pilado em tigela de cerâmica e medo.
Presente de mãe.

Levo em consideração de menina a indiferença alheia.
Peso em balança imprópria meus desejos e limites.
Sou pássaro sem canto em gaiola de rendas, bordados e gramática antiga.

O olhar oblíquo da avó me acompanha os passos, o pigarrear do pai me
adverte de um pecado que ainda não tenho.

Medos e suspiros combinam? Combinam.
Outro dia pousei o olhar na tua gravata. Tão bela e imponente. Me
surpreendeste e me viste ruborizar por baixo da etiqueta de chá que aprendi
aos cinco.
Não se avisa às moças quando os murmúrios do ventre chegam.

Lívida e espantada,
olhei para os afrescos no teto.
Teus olhos negros ali também estavam a me falar de impressionismos.
Tomaste-me o pulso com ares de médico. E eras…

O pulsar das coisas nem sempre passa pelo coração, tu bem o sabes. Ou não?

O homem primevo da moça é um deus. E ela a ele se dá, e eu me dei, com
devoção de altar.

Tiraste me a pureza e o sossego após tocar meus finos e alvos pulsos. As
artérias não mentem, meu senhor. Não mentem.

Outro dia foi no passeio público. Eu sozinha ou quase, sem pai ou mãe para
elevar bandeiras entre aquela guerra de amor e sussuros que se fazia entre
nós.

Me tomaste a mão com a mesma intensidade, cavalheirismo e dor.
Dor dos que sentem, mas não podem.

Eu lembro de bem pouco após tudo isso.
O mundo rodopiou, chamaste o meu nome, eu desmaiei em teus braços
e só.

Foi lindo.

Foi lindo o dia em que me tiraste a paz…

 

****

Conheceram-se no parque.
Pequenos e desavisados.
Imberbes de culpa.
– tempo bom da vida –

E entre jogos,
corridas e apostas,
aprenderam a dar as mãos.

E ali cresceram.
Sempre inclinados
um ao outro.
O riso farto na relva verde.
O hálito cheio de uma febre fresca e inocente.

Ria-se ela das mudanças nele.
Os pelos no rosto,
os ombros largos,
o queixo imponente.
Coisas que ela evitava olhar demoradamente.
Visto que tal exercício lhe causava vertigens.
Palavra que ela só aprendeu depois.

Maravilha-se ele que nela despertassem formas e gestos
sempre doces e inéditos.
Coisa que ela nem percebia.

Cresciam aos olhos um do outro sem saber que ali faziam história.
E por isso eram felizes.

E de tanto dividirem os jogos
e a gangorra da vida,
a infância, a adolescência
e o quase início da fase adulta,
decidiram dar o passe adiante.
Natural aos seus pés que só conheciam e só queriam aquele caminho.

E ao recebê-la assim tão trêmula e decidida, tão à ele
quanto ele era à ela,
tomou o que lhe era por mérito e direito.

E antes de nela se debruçar por completo,
deixou escapar,
em voz rouca e emocionada:

“És um paraíso inteiro…”

 

*****
“Agora que temos tempo…”

Sartre já dizia que o inferno são os outros. Pois bem.

Antes, e um antes que significa até a semana passada, tínhamos pouco tempo.
Corríamos céleres de um lugar para outro. De um país para o outro.
Impacientes com os minutos perdidos na fila do supermercado ou no chek in
dos aeroportos. Inventamos, desde que aprendemos a dominar o fogo, modos
mil de driblar o tempo, de fazê-lo render. Estradas aéreas e terrestres, barcos,
caças, submarinos. Aplicativos de precisão espacial, mapas, contagem de
passos. Como manter a forma, como meditar, como ficar mais bonitos. Vídeos
que nos ensinam o que fazer para sermos felizes e prósperos. Datings, speed
datings, nudes, mantras e coachings espirituais. Tudo on line. Tudo rápido.
Tudo para adiantar o tempo, para comprimi-lo, condensa-lo e assim caber mais
coisas. Para assim caber mais tempo. Enquanto que em nós, aquele pedacinho
de subjetividade, intuição e encantamento ia ficando de lado.

E conseguimos. Finalmente conseguimos. Driblamos o tempo. Fazemos hoje
em um terço de minuto o que há dez
anos atrás levávamos horas e até dias.

E agora o temos. Eis o tempo. Ei-lo aqui. Inteiro. Todo o tempo do mundo. E
ironicamente não fazemos ideia de como lidar com ele. A quarentena começou
agora e esgotando-se a descoberta da nova rotina, da delícia de estar em
casa, de ver tv, de organizar as coisas, de ficar com os nossos, iremos aos
poucos, descobrir que o buraco é mais embaixo. Que a coisa é bem mais séria.

Não. Não se trata de férias forçadas, nem uma simples crisezinha sanitária que
memes e frases de efeito de humoristas farão desaparecer. Essa mania que
temos de levar tudo na sátira é boa até certo ponto. Até o ponto em que não
estejamos escondendo o próprio medo, ou nos subtraindo da nossa
responsabilidade. Ou pior ainda, que o humor exagerado não seja apenas mais
uma tentativa patética de driblar o velho tempo. Pois a alienação é uma das
formas mais rápidas e eficazes de fuga.

Não tem jeito. O chamado é para todos. Do religioso ao cético. Do cínico ao
romântico. Do bêbado ao sóbrio. Do rico ao pobre. Daquele que possui
previdência privada e plano de saúde àqueles que seguram com mãos
trêmulas e cansadas o cartão do SUS.

O vírus pertence a todos. E é um dos maiores exemplos de democracia que já
presenciamos. Ainda não inventaram algo mais socialmente justo do que uma
doença. Uma pandemia então é um grande tratado de igualdade.

Somos assim. Uma febrezinha no corpo nos deixa mansos. O medo de perder
um ente querido nos torna mais empáticos. A morte, vista assim de perto e não
apenas em telejornais distantes, nos transforma em pessoas mais generosas e
gratas.

É assim desde que o mundo é mundo. Enquanto está tudo bem ou
aparentemente bem, a turba enlouquece, perde a mão. Os líderes, com suas
vestes e frases estúpidas continuam a desenhar a caricatura histórica e
histérica do mundo:

“Hi Hitler.”

“Eu sou um homem do povo.”

“É só uma gripezinha à toa.”

São as mesmas frases de antes revisitadas pelo lunático da vez.
E em meio á essa loucura, nessa queda de braço pra saber quem é de direita
ou de esquerda, quem é umbandista ou católico, quem é potência bélica e
quem é país emergente, nesse grande jogo da humanidade onde a vaidade
impera, esquecemos o simples, nos sentimos onipotentes, nos tornamos
arrogantes, descuidados, ridículos até. E então acontecem as guerras, as
grandes convulsões, os terremotos e tsunamis e nos deixam mais mansos,
ordeiros. Nos deixam humanos.

E agora não há nada a ser feito além de nos resgatarmos em meio às cinzas
do que somos. Garimparmos em meio ao incêndio que causamos e
manusearmos essa matéria áspera que sobrou para quem sabe forjarmos um
novo ser.

Agora que temos todo o tempo do mundo, é hora de pensar nem que seja por
um segundo, sobre tudo isso. E é bom lembrar que as consequências dessa
experiência não irão sair com um simples lavar de mãos.

Acho que você estava errado, meu caro Sartre. O inferno, na verdade, somos
nós…

 

QUARTA CAPA DO LIVRO CALIGRAFIA SELVAGEM

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