1 conto de Cris Dakinis

 

CRIS DAKINIS 300x225 - 1 conto de Cris Dakinis

 

 

 

CAMPEÃO

Nenhum sinal de chuva, céu claro, sem nuvens. Já amanhecia assim. À tarde, o azul vibrante ao alto coloria a vida. No verão, o vento soprava tímido, sem ajuntar nuvens para deitar uma gota sequer de chuvisco sobre o pó da estrada, conseguia, no entanto, abrandar o mormaço do fim de tarde e refrescar a noite. Foi nesse lugar que Simões e sua família instalaram-se quando chegaram de Portugal no período pós-guerra. Uma região com muita água nas redondezas, como bem explicava o nome indígena que lhe fora dado __ Iguaba.

Simões não se cansava de admirar Campeão. Este é o boi mais bonito que existe! E relembrava a infância, quando chegara com seus pais àquela cidade. Ele espiava bois ao longe, em pasto alheio… Debaixo do céu azul e sem nuvens, o vento sorrateiro lhe voava o chapéu e o pai ria… Bichos bonitos aqueles, filho! Um dia teremos os nossos… O menino Simões ficava a sonhar com o tal dia e calculava o espaço gramado ao redor da casa onde poderia criar um boi só dele, de estimação, chegando até mesmo a escolher o nome do animal com antecedência: Campeão. Talvez por relembrar conversas acerca dos rodeios que ouvira ainda pequenino na pátria deixada além-mar; talvez porque confundisse a rotina de um boi com a de um cavalo, e portanto, sonhasse com a sua futura glória nos páreos.

A esposa chamou-o para ajudar a servir o almoço aos fregueses, despertando-o das antigas lembranças. No espaço avarandado, todas as mesas ocupadas. Trabalhadores famintos aguardavam a vez. Eram três horas seguidas em que ele e a patroa cuidavam de atender, deitando e recolhendo pratos às mesas. E eram as horas mais quentes do dia… O calor da cozinha se espalhava para a bancada de comida e para a varanda; e o calor do sol da tarde adentrava a casa toda. Todos os dias iguais, com exceção do domingo. A família cozinhando, lavando louça, fazendo o caixa, servindo. E as mesas de refeição ocupadas, lado a lado, sorrindo-lhes com o ganha-pão.

Junto com o boi Campeão, Simões adquiriu o Choquito, outro boi, que não era elegante como Campeão, mas que lhe rendeu o prazer do investimento, podendo, desta forma, chamá-los no plural de “bois”. Seu pai, a este tempo, avançado em idade, admirava o filho a falar da rotina do pasto, discutindo acerca de gado… Realmente, dizia o pai, Campeão tem porte de artista, é bem-apessoado, de pelo brilhante, um belo animal. Foi então que aconteceu uma reviravolta de ordem econômica a Simões, comprometendo-lhe o capital. Ainda bem que, àquela altura, ele já tinha o seu teto e comércio relativamente garantidos para si e para a família, porém sentiu nos ombros o peso que o pai antes conhecera na pátria lusa. Simões precisou levantar dinheiro extra para cumprir compromissos. E o resgate disponível era vender um boi. Resolveu então vender o Choquito.

Ainda cedo, céu azul e nenhuma nuvem.  Um vento morno vinha da lagoa próxima, se bom ou mau vento, Simões não sabia, mas avistou, enquanto cuidava do pasto, o comprador que lhe fora indicado para negociar. O gajo chegou. Ficou a olhar o Choquito por meio minuto. __ Quero o outro e pago bem. A surpresa quase derrubou Simões. Como assim, o outro? Por que não tivera a ideia de guardar o Campeão? Estava claro que aquele boi ia chamar mais a atenção do comprador… Mas onde se poderia esconder um animal tão grande? Tudo isso Simões se perguntou em silêncio. A surpresa quase o derrubou, mas a responsabilidade o reergueu…

Depois que Campeão partiu, Simões era só tristeza. Dava um dó tamanho vê-lo sem o Campeão. A esposa se afligia, o pai se inquietava, os filhos se calavam… Na manhã do terceiro dia sem o boi, Simões foi atrás do fazendeiro. Daria o Choquito em troca e pagaria um valor adicional, mas traria o Campeão de volta. O fazendeiro era um comerciante ocupado e não quis conversa de devolver boi. __ Que boi é esse? Já foi para o abate! Não tem mais nenhum boi teu aqui…

Ao longe, o céu azul, nenhuma nuvem. O vento sobreveio ao chapéu, voando longe. Mais distante ficou a esperança de reaver o boi Campeão… Por fim, Simões resolveu fazer novo acordo com o mercador: entregaria o boi Choquito a ele e, se dentro de dois meses, Simões não pudesse dobrar o valor de Campeão em dinheiro para lhe pagar, ele então entregaria os dois bois ao negociante. Era uma insanidade, cogitava Simões. O pai deixou-o resolver sozinho, não queria interferir. A esposa olhava-o ansiosa. Todos em casa sabiam de uma coisa: ia faltar dinheiro se Campeão voltasse. Irrecusável a proposta, no entanto, o comprador de Campeão não o quis devolver, e por maldade, pura maldade __ para que avisou? __ comunicou que o boi iria para o abate. Simões ouvia o boi mugir toda vez que ali chegava para tentar renegociar… Era bem possível que ele imaginasse ouvir as lamúrias do boi. Porém Simões sentia e pressentia que Campeão queria voltar para o pequeno e antigo pasto. E daí, ele decidiu-se por um ato de loucura: foi ao banco mais próximo e levantou a quantia do boi a juros altos, tomou do dinheiro vivo e voltou à fazenda do salafrário… Não ouviu mugido dessa vez e seu coração apertou.

O céu azul, sem nuvem, um vento morno na tarde avançada soprou da lagoa enquanto Simões almoçava e ouvia a neta indagar se ele sempre se alimentara somente de legumes para ficar forte e viver muito. Ele relembrou o amigo Campeão, relembrou a antiga precisão do dinheiro, relembrou o comprador que dificultou seu sossego. Sorriu à pequena e curiosa menina e então respondeu: sim, foi por isso mesmo…

 

 

 

Cris Dakinis, premiada em centenas de concursos literários de expressão no Brasil e exterior, participa com textos em antologias e revistas e é autora de oito livros publicados de poesia, crônicas e literatura infantil. Página/blog: www.crisdakinis.com

*Imagem de autoria desconhecida

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This Article Has 2 Comments
  1. Vera Marta Reis Reply

    Lindo texto, transmiti o sentimento de Simões a respeito do boi ante a frieza do comprador que o leva ao abate, e o final triste e marcante.Amei

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