As Pulgas suicidas de Praga
”Um dos melhores equipamentos para
se livrar das pulgas dentro de casa é o aspirador de pó.
Mas é preciso ter um de alta potência, com mais de mil watts.”
Manual de como eliminar pulgas dentro de casa, 2015
Chamam minha espécie de sifonápteros. Chegamos ao planeta há mais de sessenta milhões de anos; podemos viver no máximo um ano e meio – o que me sobrevém certo alívio. Nosso olfato é escandalosamente agressivo – consigo sentir o cheiro das entranhas de qualquer ser vivo a quilômetros de distância. Somos muitas: pulgas de Praga, pulgas de Berlim, pulgas de Tóquio, pulgas da América Latina – temos pulgas até em Tel Aviv. As pulgas migram para qualquer lugar possível. Já conversei com várias – falamos a mesma língua (pulamos a mesma língua). Minha usualidade no mundo é engolir sangue e perambular de pelugem em pelugem ou de pena em pena e vira e mexe o cão mete as garras e as presas na tentativa de me triturar. Mas sou uma pulga esperta.
“Já fui gente, malandrão!
Li mais de cinco mil livros
e só mordi comida limpa.
Vira lata de merda! ”
Ele late e eu mordo. Eu mordo e ele late – em matéria de sadismo não nos diferenciamos tanto dos seres humanos. A diferença é que as pulgas não transportam culpas. Não nos perguntamos para o que viemos – nossa função é bem clara. Nenhuma mãe de pulga decide a profissão da filha e isso nos afasta da fossa e de algumas injustiças de gênero. Somos sugadoras e não tem santo e nem religião que nos faça pagar por isso – o corpo é nosso e desde o despertar controlamos nossos saltos e nossos alvos. Somos tão donas de nós que não há nem um tipo de censura, mesmo quando a pauta é suicídio. Para ser bem sincera com você, caríssima leitora ou leitor, até um certo período da minha minúscula existência não tinha lido qualquer linha a respeito de pulgas suicidas. Foi em Praga, terra de Kafka, no segundo ciclo da minha vida que me deparei com a cena mais intrigante do século das Pulgas.
Mudar me deixou confusa e devido à confusão decidi compreender o cotidiano das Pulgas de Praga. Andei com as pulgas comunistas, com as pulgas feministas, com as pulgas anarquistas e com as pulgas putas da vida – todos os movimentos eram resistentes e já tinham avançado em vários quesitos sociais. É bom explicar que embora tenhamos uma função definida no planeta, sempre houve disputa de quem poderia, por exemplo, se hospedar em um felino doméstico ou de rua, um cão de guarda ou um cão de madame, até mesmo quem poderia espalhar tifo, peste bubônica, vermes ou parasitas hematófagos. Há uma vantagem de tempo de vida enorme entre viver na pelugem de um animal doméstico e outro de rua – animais de rua convivem mais pacificamente com nossas colônias e não têm humanos tentando nos eliminar com suas químicas antipulgas.
Bem diferente das pulgas de outros lugares, as pulgas de Praga viviam um período conhecido por Primavera Siphonaptera. Quando os representantes políticos das pulgas vacilavam a comuna intervinha de imediato e não havia tempo para desculpas ou escapes. As pulgas só possuem uma vida – uma vida curta (diga-se de passagem) e temendo pela falta de qualidade de vida puniam com severidade um traidor. As pulgas de Praga não brincavam em serviço. Compreendam: um mês para uma pulga equivale a dez anos para a espécie humana e perder a qualidade de vida para nós sifonápteros é como passar a vida abocanhando ursinhos de pelúcia. Vocês humanos adoram passar a vida assim, abocanhando ursinhos de pelúcia. Mas nós, ao contrário de vocês, não temos tempo de vida para uma vida de enganos.
Depois de um mês em Praga participando de todos aqueles movimentos decidi mudar a minha vida e aproveitá-la da melhor forma – e aproveitar exigia que eu me afastasse da política por um determinado tempo. Agora a vida era sexo, sangue e ouvir canções melancólicas nas margens do Vltava. Todas as tardes as pulgas que como eu queriam aproveitar mais a vida se reuniam nas margens do rio e por alguns minutos ficavam estáticas ouvindo uma canção que falava das velhas batalhas e das grandes heroínas mortas:
♪“Você perdeu seu tempo
acreditando em Pulgas Heroicas
toda Pulga é uma suicida
que não pode gabar-se
da própria vida”♫
Em uma de tantas tardes ali percebi um movimento estranho no rio – milhares de pontinhos pretos boiando sem nenhum sinal de resistência. Parecia uma instalação de Yayoi Kusama vista por uma pulga com discromatopsia. Infelizmente eram elas – as pulgas suicidas de Praga. Boiavam como se fossem caravelas partindo rumo ao Mundo Novo; criavam uma espécie de malha na superfície do rio – no mesmo rio que abrigou o corpo de São João Nepomuceno no final do séc. XIV e no mesmo corpo hídrico que decorou as páginas de Kundera. Não havia resistência, todas se lançavam por livre e espontânea vontade ao som da velha canção melancólica:
♫ “toda Pulga é uma suicida” ♫
Não me desesperei, tinha certeza que havia um valor simbólico naquele ato. As pulgas não são propensas às chantagens psicológicas, as pulgas se movimentam pelo instinto, pela bússola natural que carregam desde a gênese da espécie. As pulgas rejeitam Camus e o grande problema filosófico. As pulgas de Praga acreditam que a questão não é se a vida merece ou não ser vivida e sim como deve ser vivida. As pulgas não se rastejam por dias melhores – se os dias são austeros e sem sangue, elas saltam no Vltava para beber o sangue incolor da Terra e imóveis se passam por mortas até caírem em outra margem onde belos cães domesticados dormem banhados pelo sol e por elas serão imperdoavelmente abocanhados.
Não, não há pulgas suicidas, nem em Praga.
Lisa Alves (1981) é mineira, radicada na capital federal do Brasil. É curadora da revista de poesia e arte contemporânea Mallarmargens, colunista da Liberoamerica (Espanha) e resenha livros para a revista Incomunidade (Portugal). Tem textos publicados em diversas revistas, jornais e páginas literárias no Brasil, Espanha, Portugal e Estados Unidos. Tem poemas publicados em nove antologias lançadas no Brasil, Argentina e País Basco. Participou de dez antologias, dentre as quais destaca: “Poema Capital” (Eloisa Cartonera, 2011, Argentina), “Palestina Poemas” (Biblioteca das Grandes Nações, 2014, País Basco) “29 de Abril” (Patuá, 2015), Blasfêmeas (Casa Verde, 2016), de contos “Novena para Pecar em Paz” (Penalux, 2017). Lançou em 2015 seu primeiro livro de poesia intitulado Arame Farpado (Lug Editora, RJ).
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