1 conto de Tiago Feijó

Natan Bruce 1 300x229 - 1 conto de Tiago Feijó

Natan Bruce

 

 

 

 

Há uma Gota de Orvalho em Cada Criança

 

Para Catarina, minha filha,

que me presenteou com este conto.

 

 

 

Quando menina me chateava muito com ocorridos como o de hoje. Não é fácil manter a calma, uma espécie de soberania intacta que devemos demonstrar nessas ocasiões; não é tão fácil quanto parece aceitar e encarar o fato em todos os seus pormenores! Mesmo pra mim, acostumada a todo tipo de preconceitos e calejada na arte de louvar e defender a minha negritude. Sim, eu sei, há negros que não suportam ser negros! Uma pena! Eu mesma não posso me entender de outra maneira e não exagero quando digo que tenho um orgulho intenso desta pele com que me visto. É como digo, quando o assunto surge e quero causar algum efeito: “Fazer o que se sou sortuda, nasci com essa cor-delícia sem fazer o mínimo esforço!”

Mas nem sempre foi assim…

Certa vez, adolescente ainda, enquanto almoçava com mamãe num restaurante aqui perto, um menino bonito, criança de uns quatro-cinco anos, fincou pé junto da nossa mesa e ficou nos olhando com uns olhos curiosos, preso no receio próprio das crianças, talvez julgando se devia ou não perguntar o que de fato perguntou, e bem assim, com a vozinha limpa de menino sem maldade: “Por que a pele de vocês é suja?” Aquela pergunta, feita daquela maneira, me atravancou a comida na garganta, e juro, de verdade, que tive vontade de vomitar tudo naquele menino. Mamãe ficou me fitando, esperando de mim uma resposta educada, judiciosa, quem sabe até amorosa, como quem explica com facilidade a uma criança por que as suas mãozinhas não podem tocar as estrelas. Mas eu não fui capaz de uma palavra, nem mesmo de ódio; fiquei possessa, pasma, perdi a fome e o norte, e quase me senti verdadeiramente suja diante daquela criança que esperava uma explicação sobre a sujeira das nossas peles. Então mamãe lhe deu uma resposta, ao mesmo tempo que me dava uma lição. Plena de carinho, e segurando com suas mãos negras as mãos rosadas do menino, mamãe lhe disse que a nossa pele não era suja, e sim negra, porque éramos de raças diferentes, mas que no fundo éramos todos iguais… Que ele nascera branquinho, nós negras, e havia ainda outras pessoas com outras cores… Mamãe disse mais coisas, simples e bonitas, das quais não me recordo, tamanho era o peso da minha raiva. Depois, o pai do menino, vindo de uma mesa próxima, curvado de mesuras, despejou na nossa mesa um sem-fim de desculpas e perdões pela indelicadeza do filho, no que mamãe lhe respondeu indulgentemente: “É só uma criança… uma doce e curiosa criança!” E o menino se foi, bonito e sorridente, acenando para nós com a sua mãozinha rosada. “Não é preciso temer, Linda, você passará por isso e talvez por coisas piores na vida. Mas não tema, mantenha a cabeça erguida e os olhos acesos, acredite em quem você é, o pior preconceito que pode existir é aquele que nasce dentro de você mesma!” Foi isso que mamãe me disse quando terminamos aquele almoço. E esta é a verdade que carrego comigo, é a verdade que me fez ser quem sou! Passei mesmo por inúmeras situações delicadas, em algumas delas fui bem sucedida, em outras não. Afinal, há crianças e crianças; como há adultos e adultos. Mas hoje… o que aconteceu hoje foi sublime, o que aconteceu hoje foi a apoteose da negritude! Se mamãe estivesse viva teria se desmanchado de alegria.

Foi no supermercado aqui da esquina, na fila do caixa. À minha frente uma mulher e uma criança, mãe e filha. Quando me dei conta a menina já me olhava com uns olhos maciços, fixos, plenos de um brilho azulejado. Não fez espera de nada, parecia cheia de palavras na boca e, sem tardar, deu dois passos na minha direção, me apresentando seu metro de coragem:

– Qual é o seu nome?

E eu, erguida num metro e oitenta, respondi com voz adocicada de falar com criança bonita:

– Meu nome é Linda… e o seu?

Por um instante, ela caiu suspensa num pensamento, como se experimentasse o nome incomum que lhe dei, antes de me responder:

– Isabela, mas mamãe me chama de Bela!

Rimos, reconhecendo a relação estabelecida entre os nossos nomes. Inteligentinha ela, e olha que não devia ter mais que cinco anos. Foi aí que olhei pra mãe, que me encarava com uns olhos azuis vidrados idênticos aos da criança, com a distinção, apenas, de que os olhos adultos eram chochos, dois olhos chochos metidos numa expressão seca, forjada de uma espécie de menosprezo. Ao mirar a menina novamente, adivinhei nela a iminente pergunta, a pergunta cabal, calejada que sou no diagnóstico dessas ocasiões. Mas a pergunta não veio, o que veio foi uma afirmativa. E a corajosinha, espevitada, nem se guardou em hesitações, foi reta e sonora:

– Você é marrom!

O supermercado estava relativamente cheio, como sempre. E deu pra perceber um círculo de silêncio se expandindo ao redor da gente, calando uma porção de bocas. Senti que me olhavam, curiosos da minha reação, mas antes dela a mãe interveio, num despautério sem tamanho:

– Bela… que é isso? Certas coisas não se falam, filha!

Os olhos da moça do caixa se pregaram em mim, desconcertados, toda ela em desalinho, como que desejosa de estar ausente dali. A mãe, sem me olhar, voltou a retirar as compras do carrinho.

– Desculpa, moça! – disse a pequena.

Transfigurada de afeto, a voz da menina agora era quase um sussurro. Me pus de cócoras e me fiz do tamanhinho dela. E ela, um pingo inocente de gente, se aproximou, perto, muito perto de mim.

– Sem desculpas, mocinha! – respondi, maravilhada com os fios dourados dos seus cabelos finos – Eu sou marrom sim… também sou mulata, parda, trigueira. Há muitas palavras, mas eu prefiro negra. Eu sou negra!

Os olhinhos dela agora pesquisavam tudo que me era pele. E assim, muito naturalmente, um carinho quase, os seus dedinhos percorreram o meu braço como se provassem a textura da minha cor.

– É bonita… a sua pele! Você gosta dela?

Tão perto de mim, a pequena Bela, que pude sentir, desprendido das palavras dela, o seu hálito fresco de criança.

– Sim, gosto. E gosto dos meus cabelos também, dos meus olhos, das minhas mãos! Gosto de mim! Mas gosto também do que é diferente de mim, como dos teus cabelos, por exemplo. – nisso, não resisti e acarinhei o ouro dos cabelos dela, uns fios tão sedosos e limpos que me escorreram feito água por entre os dedos – Os cabelos de Bela, tão belos!

E ela riu um riso tão dela, feito de certa vergonha e legítima alegria: o riso franco das crianças! Depois voltou a ficar suspensa num pensamento, enquanto eu adivinhava suas maquinações.

– Os seus também são bonitos… – disse ela afinal e, arremedando o meu gesto, colheu com a pequena mão que tinha uma mecha dos meus cabelos – Os cabelos de Linda, tão lindos!

Rimos, desta vez mais expansivas que antes, quase despudoradas. Notei que as pessoas em volta guardavam ainda certo silêncio, agora talvez admiradas com a cena que viam. Foi então que a voz da mãe irrompeu, sinuosa, as palavras todas vestidas de meiguice, e não sei por que entrevi, por debaixo desta vestimenta, um quê de viperino:

– Bela, a mamãe já está quase terminando aqui, minha querida! Você não quer vir me ajudar? Olha aqui aquele chocolate que você gosta!

A menina ignorou tudo: o convite, a mãe, o chocolate. Fez que não ouviu. E eu não pude fazer outra coisa, porque então me nasceram certas desconfianças e eu quis ver onde aquilo ia dar. Além do que, a pequena Bela estava agora quase aninhada no vão das minhas pernas, me oferecendo proximidades de amizade antiga. Sem nos olhar, a mãe continuou a retirar as últimas compras do carrinho.

– E você… gosta da cor da sua pele? – perguntei, quase tomando a criança no colo.

– Gosto… – e estendeu o bracinho para que julgássemos juntas – só acho que ela é muito branquinha, não é? Será que se eu tomar um montão de sol ela fica da cor da sua?

Por um instante a mãe interrompeu o que estava fazendo e ficou ali, rija, como que estupefata, com um litro de leite suspenso no ar, visivelmente atenta à nossa conversa. A moça do caixa, transformada, agora nos olhava com um sorriso petrificado e satisfeito, passando lentamente o código de barras dos produtos diante do laser vermelho do leitor.

– Não, mocinha, isso não depende do sol. O máximo que você vai conseguir é ficar toda vermelhinha…

– É… Isso se a mamãe não me passar protetor solar!

Rimos novamente. Impossível, a pequena Bela. E então a mãe, despida de qualquer delicadeza, dirigindo-se a moça do caixa, estabeleceu novamente um círculo de silêncio ao redor da gente:

– Será que você pode ir mais rápido com isso! Eu não tenho todo o tempo do mundo!

O sorriso petrificado da moça esboroou-se num segundo e as suas mãos, num desgoverno evidente, principiaram a trabalhar freneticamente. Diante daquela repreensão mal-educada, vi os olhos da moça se encherem de uma vergonha pastosa, quase lágrima. E caíram os véus da minha desconfiança e tive certeza do que então se passava ali veladamente. Não hesitei. Trouxe a criança mais pra perto de mim, quase abraçadas uma na outra, e, num tom mais elevado que antes, perguntei:

– Você está na escolinha, Bela?

Meneou a cabeça, afirmativa.

– E na sua escolinha não tem nenhuma criança negra?

Parou. Segurou o queixo com a mão. Pensou. A mãe agora pagava a conta.

– Não me lembro… acho que não!

Continuei; muitos nos olhavam.

– E você não conhece nenhuma outra pessoa negra além de mim?

Mais um instante pensando, os olhos dela dentro dos meus.

– Sim, conheço, a Irene!

Curiosa, inquiri:

– Irene? Quem é Irene?

Foi a mãe quem respondeu, as palavras então todas nuas, ácidas, afiadas, como setas que se atiram com rancor num alvo fixo. E aquele par de olhos azuis me fulminando, transbordantes de uma ojeriza inexplicável:

– Irene é a nossa empregada!

E me arrancou a filha, puxando-a pelo braço, num gesto bruto. Tive o ímpeto de reagir, me ergui mesmo, alta, bélica, mas o desacato me travou na garganta porque eu nada faria diante daquela criança, a pequena preciosa. Mas o que não pude fazer, ela fez por mim, na sua inocência de criança luminosa; ela, meu pequeno presente de hoje.

Mal deram alguns passos e a voz da pequena Bela se fez ouvir, ampla, límpida, sonora, articulando cada palavra como se cantasse uma canção:

– Mamãe, eu queria ser negra!

Olhei pra moça do caixa, os olhos dela se afundavam em mim, rebrilhantes, saciados, agradecidos. Também ela negra… Acho até que sorria!

 

 

 

 

Tiago Feijó nasceu em Fortaleza, em maio de 1983. Formou-se em Letras Clássicas pela Unesp. Venceu o Prêmio Ideal Clube de Literatura 2014. É autor do livro de contos “Insolitudes” (7letras, 2015) e do romance “Diário da casa arruinada” (Penalux, 2017). Tem textos publicados em diversas revistas e blogs de literatura.

 

 

 

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This Article Has 1 Comment
  1. Gustavo Sodero Reply

    Belo conto! Tiago é fera!

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