Fernando Andrade entrevista o escritor Krishnamurti Góes dos Anjos

KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS livro literatura e fechadura - Fernando Andrade entrevista o escritor Krishnamurti Góes dos Anjos

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O escritor Krishnamurti Góes dos Anjos fala sobre seu último livro publicado em maio p.p., “À flor da pele” – contos, Editora Laranja Original – São Paulo – SP., 2020, 180p.

 

 

F – Seus contos estão imersos num mundo social onde existem regras de conduta e sociabilidade, mas os personagens também agem por desejos, misturados à ideologias, aqui incluindo políticas, de gêneros. O conto pode ser um espaço onde as tensões aumentam, de acordo com o conflito. Individualismo, perante as regras sociais, casamentos por visões distintas, homens de meia-idade que tem rompantes de tesão. O conto parece uma via bem interessante destas experiências?

K – Em uma época difícil como a nossa, de permissividade, e em que há muitas pessoas, jovens sobretudo, acreditando piamente que o “Fiat lux” no planeta Terra foi realizado com o advento da Internet, gosto de pensar no gênero conto com o dito cheio de humor e sagacidade do escritor francês Denis Diderot (1713-1784): “Meu amigo, façamos sempre contos. O tempo passa e o conto da vida se completa sem disso darmos conta”. E, para não ficar em superficialidades, acrescento outra definição do escritor Jorge Luís Borges: “El cuento, por su índole sucessiva, corresponde intimamente a nuestro ser que se desenvuelve em el tiempo.

O que isto quer dizer numa mirada mais aprofundada? Que o conto é narrativa ficcional de reduzidos limites, pode ter um teor brutal, ou anedótico, intimista ou de conteúdo impressionista. Quanto à forma de armá-lo há inúmeras, e muitos outros aspectos poderiam ser referidos aqui. No entanto, o que realmente importa, é aquele insight existencial. E é natural que a visão interior perseguida pelo gênero não deixe de refletir em boa medida a personalidade e os conflitos do autor-narrador, por certo.
Entretanto, vale acrescentar; o mais importante, não é precisamente o que os personagens estão a dizer ou fazer, mas o fundamental é: o que estão a pensar. O conto se aprimora – e isto já depende muito do talento e preparo do contista-, na medida em que se revela o seu instante crítico. Onde a dicção tende a ser mais implícita do que aparente. Toda a estrutura da história curta é muito delicada, muito tênue. O pulso, a germinação o fermento está nas entrelinhas. Assim, a pergunta refere-se diretamente a algumas das oito narrativas do livro: O leitor atento haverá de observar que o “individualismo, perante as regras sociais”, opera ações e reações poderosas no curso de certas vidas, causando inclusive desastres terríveis. Que os “casamentos por visões distintas”, como ocorre no conto “O casamento”, oculta em verdade toda uma vida de afastamento involuntário entre um filho e um pai, e o que tal afastamento causou , e ainda “homens de meia-idade que têm rompantes de tesão”, como acontece em “Dois velhos… ou quase velhos”, é metáfora vigorosa sobre o estímulo que nossa sociedade provoca na juventude. Comportamentos plenos de uma libido desregrada de gravíssimas consequências negativas, em detrimento às experiências tão úteis que o ser humano pode acumular durante a vida e que deveria ser compartilhada, e não relegada – experiência e o próprio ser humano -, ao regime de coisas velhas e imprestáveis. E isto em todos os níveis, sociais, laborais, afetivos, econômicos… E a humanidade segue batendo a cabecinha na parede e termina que, em verdade, não aprende porra nenhuma!

Dessas breves considerações elementares que envolvem o gênero conto, fica-nos tão somente dois pontos absolutamente certos. O conto, independente do tamanho ou abordagem é – não se perca isto de vista -, uma ficção. Segundo ponto; se nada revela das repercussões emocionais das ações nas personagens envolvidas, no vasto capítulo da experiência humana, é um exercício totalmente ineficaz.
Repetimos: “nuestro ser que se desenvuelve em el tiempo...”.

 

F – Você lida com a experiência dos eventos como identidade cultural, aqui que podem tanto estar ligados à aspectos psicanalíticos, como filosóficos de cunho social. E tua análise desta realidade é sempre muito criteriosa, é abrangente como o conto sobre refugiados, no último texto. O que é mais importante para você, a narração em si, ou o aspecto de estudo de um tema no seu enfoque? Neste último conto, você se detém numa perspectiva histórica, envolvendo tempos históricos sociais. Fale disso.

K – Uma pergunta bastante interessante esta que merecia um debate mais amplo, tendo em vista a nossa realidade atual. Vamos nos ater ao espaço da entrevista. No primeiro livro, dos 5 que escrevi no gênero, utilizei em um dos textos, uma epígrafe de Carl C. Jung: “Se o indivíduo cresce sem ligação com o passado [consciência histórica], é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão”. Mas a resposta a uma tal pergunta, se bifurca necessariamente em duas vertentes:

A história, sobretudo a nossa, tão convenientemente adaptada aos interesses escusos que vão se perpetuando ao longo do tempo, é matéria sempre presente em minha literatura. Saliento que o texto que abre o “À flor da pele”, chama-se “Higly important! Revolution in Brazil!” e este título que dei ao conto, nada mais é do que a transcrição da manchete de capa do Jornal Norfolk Herald, da Virgínia, nos Estados Unidos da América, do dia 23 de abril de 1817, e que noticia a explosão da Revolução de 1817 no Recife. Os revoltosos brasileiros de então, realmente enviaram um emissário para os EUA para conseguir apoio dos norte-americanos que, interessados sempre com o “América frist”, nem aí. E eu pergunto: Quantos brasileiros estudaram com espírito crítico nossas tentativas de emancipação perante Portugal? Quantos de nós sabem sobre a Conjuração Mineira? Ou a Revolta dos Alfaiates de 1798? E á última das mais significativas que foi a Pernambucana de 1817, antes da Proclamação da Independência de 7 de setembro de 1822? Pouquíssimos. Sempre nossa história a se repetir. Sempre o “aquieta e acomoda de forças antagônicas”, mas poderosas. Esta a nossa história. Poucos têm esta consciência profunda. O máximo que a maioria consegue conceber neste quesito da história brasileira, é o que é mostrado alegoricamente em desfiles de escolas de samba ou novelas, como aquelas representações de Pedro I, um putanheiro de marca a querer a comer a marquesa de Santos, ou aqueles enredos que enaltecem um Tiradentes “tadinho” com o olhar cabisbaixo a caminho da forca, ou os 4 alfaiates decapitados e esquartejados na Bahia, ou os enforcados do Recife. No máximo, ligeira referência na letra da música carnavalesca. Aí está o que afirmamos acima: Se o indivíduo cresce sem ligação com o passado [consciência histórica], é mesmo como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. Falta-nos essa consciência histórica que fica somente no plano do difuso, do “ouviu falar” e etc. E é por essas e outras também, inclusive o fato de estarmos sempre divididos – sacada da dominação portuguesa desde os tempos do safado do Cabral, – aquele que descobriu a bruzundanga -, que jamais poderemos criar um verdadeiro senso de coletividade, de povo brasileiro, de nação, de nada que nos una de fato. E diga-se à propósito que uma das primeiras providências que os norte-americanos tomaram quando se rebelaram contra o domínio inglês foi unir firmemente as 13 colônias em torno do ideal comum de independência.

Caminhei até aqui na resposta para talvez, dar a perceber nos dias de hoje, o que todo mundo sente mas poucos entendem o por quê, de termos trinta e tantos partidos políticos – verdadeiras escolas de samba -, o do por quê termos bancadas dos evangélicos, da bala, do agronegócio, (e imaginem!) até um gabinete do terror, e tanto corporativismo que atravessa a sociedade brasileira desde o Planalto até a agremiação mais humilde dos catadores de latinha nos bairros do país inteiro! Onde o nosso sentido de co-le-ti-vo? Não existe. Noções como cidadania, povo brasileiro, interesses e objetivos comuns nunca se firmaram no país. Essas noções se reduzem sempre àquele maldito adágio popular: “Farinha pouca meu pirão primeiro!” E assim não caminharemos à parte alguma. Resta aprender isto, e a história poderia ajudar muito…. Será que falo a língua nagô dos meus antepassados, ou deu para entender?

A segunda vertente a que me referi no início da resposta também reponde à pergunta feita no sentido de que importa-me enquanto ficcionista que enfoca temáticas históricas com frequência, sempre tentar elaborar um amálgama entre a narração em si, e o aspecto de estudo de um tema no seu enfoque.
Busco com isto dar a perceber no caso específico do conto “Samirah e a noite dos longos punhais”, que aborda a questão dos emigrantes sírios, e que é motivo de horror para toda a humanidade, sobretudo a européia, que “um impulso, uma vez lançado, não pode ser detido nos seus efeitos, até que esses se esgotem”. E mais ainda, o mal que se faz recai sobre os ombros de todos, seja por culpa, seja por omissão. Aí a realidade mais nua e crua. Monstruosidades como foi o nazismo (e que está imbricado na trama do texto), até hoje dão seus frutos podres.

 

F – A moralidade é uma parte que se deve retirar quando se narra uma história? O olhar sobre o que se conta; sobre quais perspectivas o conto deve se debruçar para que seu efeito seja mais intenso possível.

K – Se levarmos em conta que a palavra “moral” que deriva do latim mores, significa “costume”. Ou seja, aquilo que se consolidou ou se cristalizou como sendo verdadeiro do ponto de vista da ação, a moral figura como mero padrão cultural vigente, a incorporar regras tidas como necessárias ao convívio entre os membros de uma sociedade. Creio que a perspectiva da Literatura, vista em seu conjunto, deve levar em conta sobretudo os aspectos éticos do convívio humano. Ética é a postura que aponta para um modo de ser, a natureza da ação humana, ou seja, como lidar diante das situações da vida e do modo como convivemos e estabelecemos relações uns com os outros. O que estamos fazendo uns com os outros? Quais são as nossas responsabilidades pessoais diante do outro? Ainda que não percamos de vista que a postura ou conduta ética pode ser a realização de um tipo de comportamento mediado por princípios e valores morais, o grande, o urgentíssimo aprendizado que a humanidade precisa em nosso tempo é o aprendizado da convivência. Faço minhas as palavras de Martin Luther King: Ou vivemos todos juntos como irmãos, ou morremos todos juntos como idiotas.

 

F – A moira parece ter um certo traço em seus contos, como o conto do paciente que está internado no hospital e tenta fugir dali, de todo jeito. O que há por trás da escrita se não um determinismo do que somos feito, de uma pulsão que nos fataliza tanto ao esquecimento quanto à lembrança através da literatura. Fale disso.

K – As moiras, na mitologia grega, eram as três irmãs que determinavam o destino, tanto dos deuses, quanto dos seres humanos. Eram três mulheres lúgubres, responsáveis por fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida de todos os indivíduos. Uma dessas irmãs, Átropos cortava o fio da vida e terminou entrando para o imaginário popular como a personificação da “Morte”. Daí, se vê que vem de tempos imemoriais essa preocupação. O sentimento de finitude acompanha-nos desde sempre… Há em meu livro “Doze contos & meio poema”, um conto que se chama “Inteligência filosófica”. Nele, a certa altura, dois personagens conversam. Um deles é um homem materialista e extremamente pragmático, o outro um sujeito inclinado ao pensar com profundidade. Vale a pena reproduzir o trecho:

“– E o senhor tem um senso de humor digno de nota. Mas deixe que lhe faça duas perguntinhas.
As questões filosóficas não foram postas pela razão para responder a um desafio de ordem prática que é a consciência da morte? – e Paschoal lançou um olhar para o leito de Fausto. – E todos nós não giramos num turbilhão de esperança, procurando uma forma de eternizar nossas efêmeras existências?

– Ora, doutor Paschoal, enquanto especulamos a respeito da vida, a vida já passou. E a morte, meu caro, trata do mesmo modo do mais reles idiota ao maior dos filósofos.

– Sim, com efeito, outra vez a natureza! Cada um pensa como quer, como sabe, como lhe deixam ou como lhe convém. Entretanto, a grande diferença é a maneira como cada um recebe a morte. Será que nos está facultado a escolha entre filosofar e simplesmente viver?”

Acrescento ainda, à guisa de conclusão. Aprendamos a viver primeiro, coisa que estamos ainda nos primeiros passos. A morte é consequência do ciclo da vida, da vida repito.

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Em tempo: O livro de contos “À flor da pele” do Krishnamurti pode ser adquirido diretamente com o autor no e-mail goeska15@gmail.com
Ou ainda no site da editorahttps://www.laranjaoriginal.com.br/À-flor-da-pele

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