ENTREVISTA COM O ESCRITOR MARCOS VINICIUS PEREIRA DE OLIVEIRA
Fernando Andrade: A geografia dos seus contos dá a eles uma razão de romance, pois a cidade além de ser a personagem, ela também se perpetua pelos contos como a mercearia do seu monteiro, Companhia de água e esgoto. Como foi fazer o traçado dos contos com esta margem desenvolvida de um percurso longo e amarrado entre as narrativas?
Marcos Vinicius: Eu vinha buscando essa unidade já faz um tempo; desde o meu primeiro livro de contos, “Uma ou outra forma de tirania”. Vinha tentando achar uma unidade que me permitisse olhar mais de perto para as personagens, conhecê-las melhor. Embora eu não tenha inclinação por me deter de maneira exaustiva em nenhuma delas, acho, por outro lado, que a unidade geográfica me dá uma noção mais coerente do universo que me interessa sondar. Queria que a geografia humana não se afastasse de jeito nenhum da geografia física nos contos de “As Mãos ásperas”. Por isso, quis localizar, quis demarcar com tanta ênfase o espaço de circulação das personagens. Sinto que ainda estou “amadurecendo” minha maneira particular de fazer literatura. E essa maneira tem a ver com meu modo obsessivo de me interessar pelo humano, pelos tipos humanos que vivem imprensados por um espaço que só na aparência não é ameaçador.
Fernando Andrade: Em cidades invisíveis, vi em seu livro, um eco muito interessante com o livro do Calvino, pois nas narrativas do autor italiano as cidades eram um emblema com suas inumeráveis facetas, que até poderiam ter um face de uma persona feminina. No último conto do seu livro, sobre a cidade, esta relação para mim se intensificou pelo desenho entre o olhar de dentro e de fora de um estrangeiro ( seria um leitor?) sobre a capacidade de toda cidade se entregar ou se confundir com o desejo de quem a olha. Queria que você falasse se este livro do Calvino teve alguma casualidade com As mãos Ásperas?
Marcos Vinicius: Calvino é um dos meus autores favoritos. O último conto do livro é explicitamente inspirado pelo grande impacto que a leitura de “As Cidades invisíveis” teve sobre mim. Sempre faço questão de dizer que sou um interiorano que pensa e sente como interiorano. Mas, entre a vida e a literatura, existe o filtro da experiência, do modo pessoal da experiência. Um interiorano que se interessa por literatura sabe como são frágeis os elementos responsáveis pela manutenção do equilíbrio das coisas. O escrutínio externo constitui perigo, tanto quanto a tomada de consciência, que “desaliena”. Sempre li “As Cidades invisíveis” pensando em Vista Alegre, pensando em Cataguases. Quem chega a Vista Alegre pelo asfalto, vê a ponte, a igreja e o cemitério. Sempre achei essa imagem muito simbólica. Em Cataguases, para chegar na minha casa quando volto do trabalho, passo por um painel de Portinari, chamado “As Fiandeiras”. Sempre fico triste, porque aquelas mulheres estão ali, insuladas, fiando e tecendo, em frente a um ponto de ônibus, que fica lotado de operárias e operários. São duas cidades ali, na mesma rua. Uma desnudando a outra, num embate entre ideia e realidade, arte e trabalho. Acho que o conto “Vista Alegre”, que encerra “As Mãos ásperas” é uma demonstração da minha obsessão pela relação das pessoas com os lugares.
Fernando Andrade: Você tem uma linguagem que atravessa quase como uma adaga toda uma semântica de um lugar ( seu pertencimento ou não). É aguda mas também, criteriosa nos meandros da ação e dos personagens. Fale disso.
Marcos Vinicius: Considero sua observação como um grande elogio. Fico lisonjeado com sua leitura e com sua atenção a este aspecto do livro. Mas, todo mundo que se arrisca a escrever ficção começa fazendo imitações. (risos). Só depois, muito depois mesmo, vai se libertando delas, vai desenvolvendo uma voz própria. A “minha voz” ainda tem muitos ecos dos meus modelos, dos autores que mais leio e que mais admiro. Ainda estou tentando marcar minha distância das vozes deles, tentando impor minha “personalidade” estilística própria. Não é uma coisa fácil de se fazer. Mas, é preciso. É preciso encontrar as suas próprias marcas de adulto, fazendo arrefecerem as de nascença. Posso dizer que tenho grande apreço pela concisão, pela precisão. Quando escrevo, busco funcionar como o cirurgião, que vai fazendo cortes incisivos com um bisturi afiado. Mas, tenho plena consciência da distância que há entre “intenção e gesto”.
Fernando Andrade: O futebol como raiz ou deslocamento social é colocado por você de forma emblemática no conto a história do goleiro Capiva. Esta fábrica de ilusões no seu conto ela parece ser ou ter um caráter bem pé no chão para ter uma metáfora do esporte. Fale disso.
Marcos Vinicius: Capiva é uma soma de muitas narrativas atravessadas, assim como é o futebol. Se notarmos bem a trajetória dele, que o conto acompanha desde que ele era ainda menino, tudo é interditado ou de “segunda mão” para ele: a escola, a posição que ele escolheu jogar, o amor. A ele só é permitido o trabalho, trabalho com o corpo, num espaço no qual ele também não é protagonista. Acho que ele nem perceberia, nunca duvidaria da condição de inferioridade a que o relegavam, não fosse sua amizade com o Melro, que, no conto, é uma espécie de “voz da experiência desalentada”. O Brasil é um país muito hostil para pessoas como o Capiva, porque a lógica da exclusão foi naturalizada, com a utilização da fantasia dos critérios meritocráticos. Capiva foi ensinado a aceitar que o “banco de reservas” era um privilégio concedido a alguém como ele. O Melro havia experimentado ousar desafiar a lógica. E, agora, ele testemunha o mesmo roteiro acontecer com um outro igual a ele. “A fábrica de ilusões” é muito sedutora, mas não se sacia. A cada domingo, novos heróis e novos vilões são lançados na arena para que os leões os devorem.
Fernando Andrade: O racismo atravessa todos os contos como forma desumana de desaparecimento do outro através de piadas, ofensas, maus tratos. Sua linguagem é incisiva em afrontar este mal que está entranhado no solo brasileiro há séculos. Fale disso.
Marcos Vinicius: No Brasil, o racismo tem muitas artimanhas. Artimanhas estéticas, por exemplo. No conto “Ofélia”, a personagem Ana tem um reconhecido talento dramático. Mas, ao desejar interpretar uma personagem de Shakespeare, dizem para ela que ela não pode, porque aquela personagem “tem que ser branca”. Ora, se se trata de uma adaptação, por que não “adaptar”, de fato, a obra à realidade local de um país cuja maioria da população não é branca? Porque isso seria reconhecer que não somos um país branco. Em 1911, no I Congresso Internacional das Raças, realizado nos Estados Unidos, o representante brasileiro apresentou ao mundo nosso projeto de “branqueamento”. Em cem anos, o Brasil deveria ser um país branco, segundo o projeto. Um projeto de nação, com chancela do Estado inclusive. Mas, o que vemos hoje, é um país cada vez menos branqueado, mas cada vez mais branco. A tal ponto de comemorarmos quando negros assumem papeis relevantes na televisão, por exemplo. No entanto, essa é somente a face visível de uma questão muito maior, porque racismo e desigualdade socioeconômica são irmãos siameses no Brasil. Há uma quantidade muito grande de negros pobres e uma parcela muito reduzida de brancos muito ricos. O Capiva, o Zé da Zinha, o Cabo André, Ana são personagens fictícios somente em “As Mãos ásperas”. Infelizmente, dá uma sensação de impotência saber que por mais esforços que possamos fazer com a linguagem, por mais precisa, incisiva e incômoda que ela seja, fora do livro, padecemos nas “mãos ásperas” da desumanidade que o racismo representa.
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