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F.A.: Seu romance tem um caráter polifônico, não segmentado em um único gênero. Como foi unificar todas estas facetas; romance histórico, calcado em fatos reais, thriller, um estudo do feminismo, numa narrativa fluida e polissêmica?
S.G.: De fato, “A partitura de Clara” tem um caráter polifônico. Essa modalidade de escrita aconteceu apenas escrevendo, sem eu saber previamente como seria. Quase um quebra-cabeças que se armava aos meus olhos. Não houve um propósito determinado em tratar essas vozes separadamente nem em escrever cada parte do livro independente da outra. Acredito que, assim como os pensamentos, as emoções e os sentimentos nascem fortemente marcados um pelo outro no processo criativo, ao uníssono, e a escrita assemelha-se. O texto nasceu dando lugar a dois tempos: o presente onde se desenvolve a ação à procura de uma sinfonia, uma partitura perdida; e o passado, o século XIX, em que Clara teve a sua vida e existência de concertista de piano e compositora revelada, perante nossos olhos: os da narradora, os de Patrick, eu mesma escritora e os leitores. À medida que avançava na aventura da busca da partitura desaparecida, sem desejá-lo, ia encontrando pontos de confluência entre o presente e o passado, onde a existência de Clara me trazia o desassossego e o imprevisível do andar pela vida. A vida dela que fluía entre a condição de ser mulher, o amor aos pais e a dificuldade de exercitá-lo, a paixão por Robert, o amor pelos filhos, a vocação sem limite pelo piano e sua música, a existência por vezes dramática e dolorosa, por vezes profundamente feliz pelo encantamento que por ela sentia “seu público”. Ainda alcançou espaço e tempo para dar conta da face romântica, política e histórica do seu tempo.
F.A.: A arte sempre teve um relação próxima à loucura. Como foi pesquisar Schumann tanto num aspecto artístico quando psicológico? E como estas duas linhas te influenciaram em relação à escrita do romance?
S.G.: Cabe se perguntar até que ponto existe associação entre arte e loucura ou apenas se trata de uma lenda que obedece a não aceitação das manifestações de arte, nem os artistas considerados marginais à sociedade da sua época. Rafael, Da Vinci, Velázquez, Beethoven, Schubert, Shakespeare, Cervantes em muitíssimos outros artistas; não é certo que se tornaram loucos em algum momento de suas vidas. No caso de Schumann, segundo uma fonte, ele contraiu sífilis muito jovem e na idade adulta a doença veio se manifestar sob a forma de loucura. Mas não há provas de que efetivamente foi assim. Explorei principalmente a vida de Clara e esse período da história e da cultura da Europa do século XIX. No romance, Robert é visto sob o olhar de Clara, sob sua perspectiva; e o significado que Robert teve na sua vida foi intenso.Eles se apaixonaram um pelo outro e a visão dela era profundamente marcada por um amor incomensurável. O pai de Clara foi muito cruel com Robert, o depreciava; quando escrevi sobre ele, senti a dificuldade que os atravessou quando ambos decidiram que o noivado era definitivo e que casariam assim que o pai aceitasse, e nunca aceitou. Foi muito maltratado, mas ainda assim não desistiu. Sob o olhar artístico, é difícil aceitar que um gênio da música como Schumann tivesse que ter roubado tempo à loucura, para compor como o fez. Acompanhei, através dos biógrafos de Clara, a deterioração psicológica à qual Schumann estava exposto, seu amor pelos filhos e a sua renúncia quando percebeu que ficar perto dos filhos poderia ser perigoso para as crianças, na medida em que ele perdia o controle de si mesmo. Ainda assim, a produção de Schumann foi tão extensa e bela que sobreviveu a todas as épocas, sem dúvida mais do que a de Clara.
F.A: Clara é um mulher à frente do seu tempo. Como foi o desenho dela? E maternidade é muito bem estudada por você, fale um pouco sobre isso. Que tipos de análises de gêneros, um romance como o seu, pode trabalhar hoje, partindo de uma perspectiva histórica onde havia padrões de conduta bem machistas?
S.G.: Queria começar a falar sim sobre o ponto de partida para o desenho de Clara.
Precisamente o que me mobilizou foi descobrir, após ter lido bastante, que Clara foi uma mulher à frente do seu tempo e até hoje injustiçada. Partindo do fim da resposta anterior, poucas pessoas sabem quem foi Clara Schumann, quem sabe acredita que foi a mulher de Robert Schumann, sendo que isso não diz nada de Clara! Me sentia insegura de ser capaz de transmitir a minha paixão por Clara sem ser uma biógrafa banal. Pensei muito no que queria fazer com Clara; tinha descoberto, passados quase dois séculos, quem ela era. Desejava expor, através dos traços característicos da sua personalidade, as histórias mais significativas da sua passagem pela vida. A sua firmeza e o conhecimento que ela possuía de si mesma, numa época tão remota. A condição de ser mulher, esposa e mãe não entraria em colisão com sua carreira artística, ela tinha tomado essa decisão e ninguém a tiraria desse lugar; a força com que tomava decisões seria meu norte para tratar a personagem. Assim, nada podia ser frívolo nem superficial: a casa em que morava, a roupa que vestia para dar um recital, o tempo que estava em casa com as crianças, o convite para seus amigos músicos assistirem a uma vigília e jantarem na casa da família. A tudo isso atribuía um significado, um sentido que a fazia ocupar um lugar no mundo. Era um personagem que não me dava descanso, que sabia me dizer “não faço o que não quero fazer, ainda que esteja errada”. Era melhor permanecer errada – se assim lhe parecia – do que aceitar aquilo que negava. E eu tinha que ouvir para respeita-la. Muitas vezes a enfrentei com as suas próprias decisões, sempre tão convicta e firme, como foi ao não extravasar o amor que sentia por Brahms, após a morte de Robert. Era eu que tinha que aceitar suas decisões. Ela possuía uma visão de gênero em relação às mulheres da época, que pertenciam à sua classe. Considerava-as mulheres burguesas que não se afastavam de um padrão submisso ao marido e dentro do que se esperava delas no meio social. Do jeito que a sua pergunta foi formulada, pareceria que pelos padrões da época não serem mais aceitos hoje, os comportamentos machistas tivessem desaparecido, o que não é verdade. Dependendo do grau de instrução e até às vezes da classe social, os comportamentos relativos a gênero variam, mas isso não significa que os valores machistas tenham desaparecido. Tanto que um dos piores males na atualidade é o feminicídio. Daí que todos os tipos de análises de gênero podem ser desenvolvidos na atualidade.
F.A: Há uma trama de suspense que corre com dois personagens procurando a partitura desaparecida. Como foi essa costura entre presente e passado? Partindo de uma indagação sobre um objeto de valor artístico impressionante?
S.G.: A costura entre presente e passado aconteceu naturalmente, não houve artifício nenhum para o livro ser escrito dessa forma. O ponto de partida: uma indagação sobre um objeto precioso que tinha desaparecido, a explicitação da sua existência e o mistério do seu desaparecimento. Por enquanto é necessário dizer que o livro inicia com dois amigos conversando. Isso é muito importante dado o meu entendimento da amizade, porque esta acontece se a confiança no outro se desenvolve e quando se chegou num ponto de intimidade; é aí que se podem dizer as coisas que durante muito tempo se mantiveram ocultas. Patrick contou a Anna sobre a existência da partitura e ambos concluíram o significado que teria para a música encontrar esta obra de arte de incalculável valor. À medida que narrava as alternativas da busca da partitura, encontrava os momentos em que a aventura interrompia-se e dava lugar à existência de Clara. Aliás, na trama de suspense, me senti completamente livre para imagina-la, para criar um clima entre os protagonistas e para lhes outorgar o poder de decidir como as coisas vão prosseguir. Tentei imiscuir-me o mínimo possível, eles podiam bem me introduzir na história e, estranhamente, eu sabia como me encaminhar por uma senda que iniciava com uma viagem às terras de Clara. Não senti medo, podia ser a narradora, teria o que contar aos meus leitores. Era como o desenrolar de um novelo que vagarosamente ia se aproximando a desvendar o lugar em que se encontrava a partitura. Nessa metalinguagem, tudo parecia estar calmo e no lugar devido, mas não estava, os protagonistas temiam pelo seu destino, não apenas o da partitura, mas pela própria sobrevivência, e teriam que enfrentar perigosos bandidos antes de achar o que procuravam. A escolha dessa parte da narrativa de ficção policialesca me deu também a flexibilidade de introduzir temas aleatórios sem nenhum compromisso de tratamento e/ou prosseguimento dos mesmos. A escolha de uma forma literária fluida obedece à intenção de contar uma história extremamente séria e complexa e de múltiplas faces num meio fluido e leve, de maneira que o leitor não desista, mantenha a atenção, se emocione e saiba quem foi Clara Schumann com muita seriedade e veracidade histórica.
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