Fernando Andrade entrevista o poeta Leonardo Almeida Filho

TUTANO LITERATURA E FECHADURA 2020 - Fernando Andrade entrevista o poeta Leonardo Almeida Filho

créditos: Wanderson Alves

 

 

F. A.: Dar nome aos bois, rotular, classificar, o segmento é… virou nome de rua. O poema procura seu furo de linguagem, e não da notícia, de reportagem. Como foi dar com estas cavidades tão convidativas, em tom de penumbra poética?

L.A.F.: Dar nome às coisas é apossar-se delas e, nesse ato, tragicamente, eliminá-las.
Ter a posse das coisas é uma atitude nefanda, anti-poética. O poeta deve agir como uma criança diante do mundo, buscando descobrir o mistério das coisas.
Exatamente como a criança que, após dominar um brinquedo novo, perde seu interesse, age o poeta. É preciso buscar as coisas como se fosse a primeira vez e nessa descoberta, nesse frescor, compor seus versos. Ver mais no mesmo. O poema surge do contato com a coisa em si, com a realidade, mas ele não é simples reflexo, não é balança ou “medidômetro” qualquer. Poema não é medida, pois explode o conceito de tamanho. Por isso o poeta sabe que é preciso dizer o nunca dito, numa maneira sempre nova, pescando a melhor imagem e trazendo-a à luz no instante da fala. Falar de amor, por exemplo: quantos poemas de amor já foram escritos e quantos ainda não serão compostos? O desafio é o como dizer amor em tempos de barbárie de uma maneira que signifique mais que a “cavidade convidativa” do conforto, do clichê, do lugar comum. Nomear é tomar posse do objeto e retirar dele o mistério. Isso não é matéria de poesia que, para mim, tem a função de fazer explodir o campo semântico de todas as palavras. Nomear é matar o objeto e a função da poesia é fazê-lo vibrar e ser eterno.

 

F. A.: Seus poemas parecem uma narrativa de um subsolo poroso, onde parecem ter tantos estados, juntos, o filosófico, o religioso? a estética, e o trovadorismo. Como é para você a criação do início das imagens? A musicalidade é uma parte onde se dá seu começo? A entonação, ritmo, o tropel das palavras precisam de uma concatenação?

L.A.F.: Minha poesia é o que fiz de mim nessas seis décadas, ou seja, ela é fruto de minhas leituras, minhas vivências, minhas neuras, meus amores e desamores.
Esse é o “subsolo poroso” de onde surgem meus versos, que eu prefiro chamar de tutano. Sim, é do tutano que me vêm as imagens, a musicalidade, o ritmo, a entonação. Para mim, a poesia é um fenômeno corporal, na medida em que seu ritmo esta intrinsecamente ligado ao pulsar das veias, da respiração, das batidas do coração. Sendo do corpo, vem do tutano, da medula, sua expressão maior sobre as coisas vividas, observadas, sentidas. Das minhas crenças e descrenças, certezas e dúvidas, vêm minha poesia. Sou compositor, então muitos de meus poemas trazem a melopeia da canção popular na sua pele e isso me é inevitável.
Faço versos como quem canta. Meus versos são, em grande parte, cantáveis. O músico e amigo Marcio Faraco, por exemplo, talentoso compositor brasileiro radicado em Paris, explorou alguns de meus poemas e fez ótimas canções, que me deixaram orgulhoso da parceria. Alguns dos poemas de meu primeiro livro, o “Babelical”, ganharam melodia pela veia singular do compositor e saíram magistralmente do livro para a partitura, da récita falada para a cantada. Falar em inspiração pura e simples é desconsiderar que poesia é muito trabalho. Chego a crer que só tem inspiração quem enfia a cara no trabalho, ou seja, é da labuta poética que nasce a inspiração. Os poemas de “Tutano” foram escritos, em sua esmagadora maioria, durante todo o ano de 2019. Surgiram durante uma longa viagem que fiz. Foram escritos, reescritos uma dezena de vezes até que os desse por terminados. Isso é muito trabalho, dolorido trabalho que o poeta faz solitariamente, por sua conta e risco. Fazer poesia é um eterno risco.

 

F. A.: O que seria a descendência de um poema? Herdamos traços físicos do pai, temperamentos da mãe, parece que nossa própria vitalidade para vida nos encarcera num poema biotípico ou numa epopeia? Inspirar não seria apenas um ato intuitivo de respirar o poema. Fale disso. (pensando um pouco nos poemas do pai e mãe).

L.A.F.: Creio que descendência poética talvez esteja ligada aos poetas que nos formam intelectualmente. Há uma linhagem de poetas que de mim se aproxima e se afasta por afinidades muito específicas. Por exemplo, entre Cabral e Drummond, representantes maiores de linhagens poéticas muito específicas, com certeza a minha poesia caminha em Itabira e na rosa do povo, plena do sentimento do mundo, esquecendo do Capibaribe e do cão sem plumas que espanta os galos da manhã. Adoro o João Cabral, mas sinto em Drummond uma afinidade tremenda, coisa que a secura substantiva de um Cabral não consegue me atrair. Minha poesia descende de Bandeira, de Mario e Drummond, mas isso não quer dizer que não reconheça e valorize os primos distantes em Cabral, Joaquim Cardozo, Oswald de Andrade. Minha poesia vem das minhas leituras dessas linhagens todas. Há uma enorme lista de poetas vibrando nos poemas que eu escrevo.
Contemporâneos, como Alberto Bresciani, com quem tenho a honra de manter um profícuo contato, entram na lista de poetas que admiro e que influenciam, com a força de sua poética, a minha poesia. Estão no meu DNA poético e disso a gente não escapa, como não escapamos da figura de pai e mãe, tema recorrente em minha poesia. Em “Tutano” tenho poemas que me batem profundamente pois, inspirados em meu pai, dialogam com a sua perda. Meu pai faleceu recentemente e inesperadamente e, com a sua partida, os poemas que lhe fiz no livro ganharam outra dimensão, talvez mais trágica, mas dolorida, mais próximas da dura consciência da morte.

 

F. A.: Como foi o trabalho das fotos? Qual foi a intimidade delas com os poemas?

L.A.F.: Eu me aventuro também nas artes plásticas, onde arrisco minhas aguadas. Sou um apaixonado pela imagem, uma vez que tenho a crença de que a palavra tem seu calcanhar de Aquiles na própria impotência da sua racionalidade para adentrar certos territórios. O velho clichê “uma imagem vale mais que mil palavras” tem para mim sua validade. Adoro o trabalho fotográfico do Wanderson Alves pela leitura que deles emana muito além do manifesto. Sempre lhe disse que julgava suas fotografias uma espécie de poesia pictográfica. Suas imagens são uma poética selvagem e sublime, trazem aquele frescor inicial que falei anteriormente, o novíssimo a partir do velho, o muito mais no mesmo. Seu olhar sobre as coisas é sempre um olhar bárbaro e jovem, extraindo delas um novo jeito de ser. Percebi que o que ele fazia em fotografia dialogava com os versos que eu andei escrevendo em todo o ano de 2019, por isso pedi sua autorização para incluir suas fotografias no livro, não como ilustração dos poemas, mas como poemas imagéticos concretos que elas são. Lado a lado, as vinte e cinco fotografias trazem a beleza da reflexão pictográfica sobre o mistério da existência. Seus mil tons na escala cromática do branco ao preto constroem uma narrativa poética que, assim como em meus versos, produzem um estranhamento, uma debruçar-se sobre o cotidiano indo muito além do aqui e agora. Os poemas de “Tutano” têm, todos, essa pretensão de exprimir a perplexidade diante da vida e da morte.

 

A fossa
            Sobre um poema da Adriane Garcia
Não se atreva a salvar um poeta
é no afogamento que eles respiram
vivem no mergulho mais profundo
onde a poesia encandeia
seus olhos de peixe,
frios,
acostumados às fossas.
 
Retirá-los, à força, da água,
por melhor que sejam seus motivos,
é determinar a sua morte
e o fim da poesia.
 
Deixai, portanto que eles se afoguem
a cada braçada em direção à escuridão
num lugar que nunca apreenderemos
e tragam a luz de seus versos para nossos dias
tão escuros.
 
Só os poetas percebem
nossa lenta agonia
e que morremos
sem nos darmos conta
como peixes sobre a terra

 

Leonardo Almeida Filho

 

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