ACERTOS
Fernando falava das minhas imperfeições com um gosto ímpar, como se degustasse cada fibra de sua morbidez entranhada. Estufava o peito e arregalava os olhos, com o claro ímpeto de me paralisar, para destrinchá-las uma a uma.
Fato é que, não satisfeito, empregava força desmedida para demarcar o lugar, que era seu de direito, segundo afirmava. Detonava os nossos poucos pertences no chão, às vezes um abajur, um copo, louças etc., e, logo, liberava a expressão encrespada com um ar viscoso, vindo de suas profundezas enigmáticas, que impregna a atmosfera de medo.
Mãe já dizia que Fernando não tinha as faculdades perfeitas – falava de saúde mental. Depois que pai se foi, num domingo ensolarado, alegando que compraria nosso sanduíche na padaria da esquina, Fernando se enclausurou. Não quis mais ir à escola.
Abandonou os prazeres comezinhos, para simplesmente se voltar às coisas miúdas. Adorava acompanhar o tracejar das formigas, das aranhas no teto, e isso o fazia se acalmar.
Desde então, posso dizer que perdi pai e irmão. Sobrou-me muito: mãe, uma mulher intrépida, na medida do possível, que também definhou, progressivamente, com o abandono forçado. A família, que deveria ser o nosso esteio, ajuizou que mãe seria a culpada pelo desaparecimento de pai; que cobrava muito dele; que não lhe dedicava o amor devido. Posso confirmar que não; sempre a culpa recai sobre a mulher.
Pai, aquele de quem não lembro sequer as feições, pois tinha sete anos quando sumiu, bebia bastante, faltava ao trabalho e deixava nas costas de mãe toda a responsabilidade por nossa criação. Nunca nos levou à escola nem se dignou a ir a uma festinha, mesmo a do dia dos pais. Era do tipo “venha a nós o vosso reino; e aos outros, nada”. Sua mãe, dona Dinorá, com a qual perdi contato há muito, defendia o desalinho do filho, a ponto de agredir mãe – não só com palavras. Determinava, muita vez, que limpasse a casa, “que estava imunda”; preparasse boa comida, pois o filhinho estava magro; e, também, dava boa parte do salário para alimentar os vícios do senhor mimado.
Fernando, aparentemente, não tomava partido por ninguém. No fundo, pelo apego intrínseco a meu pai, culpava mãe pelos graves problemas de nossas vidas: a pobreza e o desamparo social. Chegou a falar, na presença de familiares, que nós fomos penalizados pela falta de amor de mãe, que se queixava ao meu pai de todos os desmandos do país, “como se meu pai fosse o presidente”.
O amargor cresceu, geométrico, e virou ódio. Tudo que mãe pedia era negado.
Lavar as louças, varrer o chão ou guardar as compras era tudo motivo de xingamento, revolta. Para falar a verdade, tinha medo do furacão; passava a léguas de distância de Fernando, com receio de um raio sobrar para mim. Ao passo que consolava mãe, quando a via chorar no quarto, sobretudo, para não suscitar mais perturbações.
Houve um tempo em que, com o apoio de Diva, minha tia, mãe tentou tratá-lo, e o erro de cálculo foi contatar uma clínica conhecida da cidade, que possuía umas práticas questionáveis para o tratamento, como o choque e o banho de água gelada. Aquilo o tornou selvagem, perigoso, ameaçando tocar fogo em tudo se o incomodassem.
Quando mãe caiu enferma, não poupou os estorvos de sua perseguição. Queria que a comida estivesse ao seu alcance, às tantas horas do dia, ou armaria um escândalo.
Fui obrigada a abandonar o serviço, porque mãe não teria condições de servi-lo a contento. E, para não tirar a paz de mãe, nesse momento difícil, tornei-me serviçal de Fernando, entregando-lhe, regularmente, a alimentação. Não trocávamos palavra. Não nos tolerávamos. Coloquei na cabeça que estava fazendo o bem à minha mãe.
Num belo dia de sol, bati a porta e não ouvi os sons macabros do ritual para abri-la. Bati mais, com força, porque não teria tempo a perder; precisava me dedicar a mãe.
Depois de quinze minutos, deitei abaixo a armadura de Fernando e encontrei, primeiro, o quarto em ruínas. Muitas embalagens e restos de comida, os quais, na verdade, eram utilizados por bichos medonhos, sobretudo baratas e ratos. Com um pano no rosto, entrei mais e o encontrei deitado no chão do banheiro. Era um homem gordo, de um metro e oitenta, mais ou menos, que só poderia ser retirado do local com a ajuda de uns três homens grandes. Não respirava. Estava roxo, dos pés à cabeça. Imediatamente, chamei a ambulância, que não tardou a chegar. Por sorte, mãe não tomou conhecimento.
Pedi a uma amiga para resolver as papeladas do enterro.
Somos duas, unidas por laços transcendentais. Ela não fala, só se comunica com os olhos ávidos, vivos. O derrame a deixou paralisada da cintura para baixo. Ainda consegue fazer leves e doces carinhos nas minhas mãos. Isso é o que me basta, para saber de amor.
Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance Flor no caos, pela Desconcertos Editora; e em 2020 o livro de contos, Contículos de dores refratárias, pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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