por Alexandre Brandão | contista e cronista
Neste novo livro, Fernando Sousa Andrade mescla um conto a uma série de poemas. Mal faço a afirmação e já penso em recuar, na medida em que o conto é, de fato, um poema, ao passo que alguns poemas são narrativos e poderiam ser pensados como minicontos ou filmes, sim, filmes, cinema. Essa mistura de gênero é o chão do escritor e resenhista, ou melhor, dialoguista (neologismo que invento para marcar minha posição de que, de fato, Fernando não faz resenhas, mas propõe diálogos com os livros sobre os quais escreve), portanto o novo livro não poderia fugir do que já é um estilo.
Como abertura de “Interstícios”, uma fábula lança pistas (nebulosas) para a leitura. É um “diálogo” entre Pedro (ou pedra) e Zé Ser. O primeiro, um escritor em processo de criação, perambula perdido (“em nenhuma pedra se marca lugar, pois apesar de tamanho, forma, todas são semelhantemente constituídas”) por uma estrada. Zé Ser, bem, apesar do nome é uma cobra (Pedro é pedra, Zé Ser é cobra.
Em Fernando, a “confusão” de gênero não está apenas no campo literário); mais que uma cobra, é a que presenciou o pecado original — ou foi a responsável por ele.
Pedro fala pouco e, encantado (“havia tomado um comprimido de LSD”), escuta. A cobra — nem macho nem fêmea, círculo de si mesmo, de si mesma — não vê em Pedro nem Adão nem Eva, tampouco situa o paraíso naquele chão. Zé Ser quer se livrar do peso de ter levado os filhos de Deus ladeira abaixo e, para isso, faz trovas, repentes, canta, toca instrumentos, certo ou certa de que músicos não carregam veneno nos lábios. Nesse encontro, prosa e poesia, ancestralidade e alucinação, vazio e conhecimento, procura e plenitude se afastam, se aproximam e lançam os elementos que ecoarão nas poesias ou nos contos ou nos filmes do restante do livro.
Os textos de Fernando seduzem pelas imagens impactantes (“Quando mordo meu próprio rabo sou círculo de mim mesmo”) e a elas o leitor — eu, pelo menos — se fixa, procurando absorvê-las, para aí então seguir em frente. Seguir em frente significa ler de forma mais ampla, perceber a beleza do rosto que, de início, chamou a atenção pelo nariz bem-feito. Nessa imagem, preciso acrescentar que um rosto nem sempre precisa de um nariz bem-feito para ser um rosto, ao passo que um poema não será um poema se não fizer uso de imagens impactantes. Sendo assim, ao abrir este livro tenha como certo que travará contato com a poesia, esse rosto lindo e feio de nossas questões existenciais, estéticas e/ou lúdicas.
O poeta, penso, toma liberdades com a língua e suas regras. Fernando antecipa pontos de interrogação (“Qual? Efeito será uma parte do escombro.”); não marca diálogos; usa e abusa das palavras (“mesmo tronco de velhas árvores que / sobem lume às estrelas” — o grifo é meu), enfim, veste-se do direito poético básico e inexpugnável de refazer a linguagem e apontá-la para qualquer uma das direções do tempo. Pelas mãos do poeta, a gramática é subjugada pela poesia — a bem de ambas, mas isso é outro papo. Não por acaso, e como exemplo, em “A peleja do verbo com o substantivo”, a poesia extrapola a simples ourivesaria para travar batalhas no ringue da linguagem.
Fernando faz poesia a partir de referências muito claras, pelo menos para mim que compartilho de caminhadas e cervejas com ele. Sua leitura — seja de filósofos, aqui um Nietzsche, ali um Adorno, seja de outros poetas, como é o caso de Patrícia Porto — e sua paixão pelo cinema deixam marcas na escrita. Se, num caso, há uma referência oculta, noutros o nome revelado serve ao jogo poético (“Requinte de beleza, adornos / Com a filosofia do próprio Adorno.”). O que me encanta, de maneira especial, são seus poemas-filmes, seu poema-cinema, captação do mundo em movimento (“Por longos minutos, figos entram em duas bocas / O jeito de mordê-los é visto em close”), feita como se o poeta carregasse uma câmera (não apenas na mão) e um manancial de ideias (na cabeça e para além dela).
No interstício entre o belo, o correto e o espantoso, o sentido que se extrai de todo o material que nos é dado à leitura não é único, é ambíguo e surpreendente.
Numa rede social, o autor disse que Zé Ser seria uma espécie de apresentador ou apresentadora ou cicerone do que viria adiante, enumerando: a literatura, o sexo, os escritores e até a pandemia. Pois é isso, o livro tocará em cada um desses temas, mas tocará, dependendo do caso, com curiosidade — como se levantasse o pano que esconde algo (“A matemática / é sim uma poética / dos espaços”); com leveza (“que teu abraço / nutra veias no abrigo”) e humor (“Já leu Kafka, Joyce e Proust, / mas sua última lembrança não remete à leitura, / um escaravelho, não moço, nem velho, eclodindo ovos / numa lanhada madeira.”); com sensualidade (“Neste cio, o princípio / Toma sua violência do ciúme / Domando o corpo físico); mas sempre atento aos dias de hoje (“Lá no norte o monge longe do oriente / Falou que o ocidente tem excesso de palavras tristes, / Enquanto no oeste palavras são tiros”).
A poesia-cinema de Fernando é um plano-sequência incomum, obra de um poeta que caminha fora da curva da literatura atual. Para lê-la, acomode-se na poltrona, com ou sem pipoca, acenda todas as luzes e, vigilante como uma cobra em redenção, não perca uma palavra que seja deste “Interstícios” — e depois, só com seu assombro ou na balbúrdia dos bares, monte o quebra-cabeça.
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