Fernando Andrade entrevista o escritor Jozias Benedicto

Jozias A ópera náufraga capa - Fernando Andrade entrevista o escritor Jozias Benedicto

 
 
 
 

FERNANDO –  Existe uma relação coesa entre as imagens de um filme com imagens de um poema. Ambos têm uma duração, também em suas pontas: cortes, e possuem uma semiologia como uma fábula poesis. Me fala um pouco desta relação e como você construiu “A ópera náufraga” neste contexto?

JOZIAS – A primeira visão que norteou a escrita destes poemas foi a de imagens soltas: filmes antigos, sonhos, memórias quase esquecidas, árias de óperas. Sobre este pano de fundo, os personagens foram aos poucos tomando vida e os versos se entrelaçaram em um enredo, situado em um local e em um período histórico, o auge do ciclo da borracha. A movimentação destes personagens dá origem ao tema da viagem, e o navio que cruza o Equador é o elemento dinâmico, de desafio, busca e superação, rumo ao elemento estático monumental, o “Teatro de estranhas inutilidades” que, como os personagens, desconhece ainda seu trágico destino.
Você tem toda a razão, na gênese deste meu livro está o cinema – e a ópera, sua irmã mais velha – ambos talvez filhos dos sonhos. Isto fica bem aparente no ritmo, no fluir dos poemas como um rio, nos leitmotiv que marcam personagens e situações, nas mudanças de narrador, nos pontos de virada da narrativa.

 

FERNANDO – Existe uma reflexão nacional a ponto de pensar o país através de uma simbologia da extração\exploração de um de suas mais ricas e culturais matérias primas. Por que escolheu este tema, e como o rio Amazonas atravessa este enredo com suas variantes fluídas?

JOZIAS – Um assunto que me faz pensar é como o Brasil colocou a perder seus projetos. Do “pais do futuro” dos anos 1940 para um país que hoje parece conformado em viver um dia depois do outro, um governo e um golpe depois do outro, sem um projeto de médio ou longo prazo a não ser o de exportador de commodities e de genocida de seu próprio povo. Neste livro quis pensar e falar sobre isso, mas não com uma visão de historiador econômico ou de ensaísta e sim através da ficção, da poesia. Para tanto, recuei ao passado, a um momento de inflexão – do fausto à decadência – para falar um pouco do Brasil atual, no qual “sempre haverá escravos”. De todos os ciclos econômicos brasileiros talvez o ciclo da borracha tenha sido o mais perverso. Sua debacle nos deixou como herança ruínas que a selva e o rio, ao engolir, são como vanitas a nos alertar que a morte é o fim de tudo – e que pode também ser o fim de um país ou uma sociedade que esquece de buscar a si próprio, de enfrentar suas verdades, de lutar e resistir.

 

FERNANDO – A personagem é uma cantora com seu filho navegando pelos rios do norte procurando um teatro para cantar. Esta busca do lugar onde épico e pessoal se urdem, regional e voz se unem para refletir uma crítica social ao isolamento do norte perante as benesses culturais do sudeste, onde há dinheiro, sucesso, etc.

JOZIAS – “O Brazil não conhece o Brasil”. Vivi no Nordeste até os 15 anos de idade, minha família tem raízes lá, e para mim esta divisão do Brasil entre Sul/Sudeste dinâmico e Norte/Nordeste tradicional é muito presente o tempo todo. O Norte é o que o Sul vê como férias, sol, praia, sexo, comida apimentada; é o que os infográficos colorem de uma cor como a parte do país que desta vez “votou bem”, ou que desta vez “votou mal”, de acordo com a ideologia do dono do jornal. É a região onde a desigualdade ainda é mais funda e dolorosa, onde as oligarquias e o patrimonialismo fazem com que, mesmo que mude a mão que empunha o cabo, o chicote se mantém o de sempre.
Este fosso se aprofunda. O desenvolvimento econômico, atrelado ao modelo exportador de commodities, faz com que o agronegócio se expanda do Centro-Oeste para as terras baratas do Norte e Nordeste, à custa da destruição ambiental e sem melhorias em educação e cultura. À falta de um projeto para o Brasil, talvez hoje estejamos conformados em ser tão somente um Jeca Tatu dirigindo uma Hilux 4×4.

 

FERNANDO – Por que a escolha dos sonetos na maioria das poesias para trabalhar a forma da história? Em que ela ajudou para dar voz à estética pretendida?

JOZIAS – Gosto de usar formas tradicionais da poesia para subvertê-las, contrapô-las a formas mais livres e contemporâneas. Uso bastante a forma do haicai – três versos com 5, 7 e 5 sílabas – e do soneto – desde sonetos com métrica e rima que vão perdendo rima e métrica até chegarem a poemas com versos livres, que só conservam do soneto a quantidade de versos, quatorze, unidos em quatro estrofes, dois quartetos e dois tercetos.
Vejo esta diversidade de formatos como uma maneira de dar variedade e ritmo ao livro como um todo, e pretendo que este recurso ajude a tornar a leitura mais instigante, surpreendendo o leitor.
Além disso, também uso estes formatos tradicionais como grades ou delimitadores para a construção dos versos, mesmo que estas “grids”, que trago de minha vivência como artista visual, sejam na maioria dos casos apenas sugestões ou resquícios – como alicerces, enterrados na areia, que restaram de uma antiga casa demolida.
Em um dos poemas de “A ópera náufraga”, justamente um soneto, conto a morte do poeta lírico, e é o que eu pretendo: usar os poemas para discutir a impossibilidade hoje de fazer poesia – neste mundo em que tudo se derrete – mas, ao mesmo tempo, evidenciar como é da maior importância, no mundo de hoje, seguirmos fazendo poesia.

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