Fernando Andrade entrevista a poeta Maíra Fernandes de Melo

MAÍRA URUTAU - Fernando Andrade entrevista a poeta Maíra Fernandes de Melo
 
 
 
 

FERNANDO – Há em seu livro um lírica do espaço onde o corpo se põe em latência. Uma frontalidade por jogos de cena onde a ação não é apenas movimentos em direção à, mas também discursos sobre os desejos do ser, suas pulsões. Fale um pouco disso.

MAÍRA – Sim, de alguma forma, ao dar letra a esses desejos, o corpo fica necessariamente pressuposto. Nessas cenas, há uma certa grafia do corpo pela vida, mas não exatamente para escrever sobre o corpo, e sim com o corpo, porque não há como dissociá-lo do discurso sobre aquilo que o atravessa. Porque é no corpo que está o que nos afeta. É o corpo que vive o assombro. E ao mesmo tempo, e talvez isso não seja tão imediato em uma sociedade que se acostumou com essa dissociação, é no corpo que moram os discursos. Me lembra um pouco daquela reprimenda clássica da infância: eu me debruçava na janela e minha avó dizia “cuidado, menina, pra não cair sem querer, porque a cabeça pesa mais que o corpo”. Como se a cabeça não fosse ela também corpo.
Como se dançar não fosse pensar com a bunda, como diz um dos poemas do livro. Não creio que sejam categorias partidas. A poesia de certa maneira pode dar testemunho disso, desse tratamento “mental” de algo que é “físico” (as aspas são importantes). Em diversos poemas do livro, o corpo (o que mais comumente associamos ao corpo) comparece: nos pelos, no vento no rosto, no cio, na falta de ar, vômito, sede, fome, pele, carne, osso… Acho que é viver a linguagem no corpo, o impacto do assombro no corpo, e, aí sim, talvez um corpo em latência, na medida em que ele sempre está, já que ele é a terra dos desejos e angústias. As cenas e situações dos poemas do livro são de algum modo o que venho chamando de poeira dos dias. Não propriamente um “cenário”, um fundo para os discursos sobre as pulsões, mas um ambiente em que seja possível elaborar esses desejos em ação. Capturar esse cruzamento em que as imagens, como narrativas das cenas, como essas poeiras das nossas vidas cotidianas e do mundo, se encontram com esse impacto do mundo que o discurso elabora – impacto que precisa ser elaborado pelo discurso, para que se possa dar conta dele.

 

FERNANDO – Me veio a ideia uma noção de morada sobre tanto o corpo físico quanto o corpo das palavras, o invólucro onde nascem as poéticas, os paradoxos, as metáforas. Você parece que faz em seu livro estas duas pontes que a linguagem se faz morada no portal de entrada do interior ser. Como trabalhou linhas e conteúdos?

MAÍRA – Tem um poema da Alejandra Pizarnik, do Extração da Pedra da Loucura, que me é muito caro e diz assim: “Cuando a la casa del lenguaje se le vuela el tejado y las palabras no guarecen, yo hablo”. Eu gosto muito de pensar a escrita exatamente nesse duplo lugar: como abrigo e como desamparo. A poeta só pode falar quando a linguagem já não abriga, sendo que ao mesmo tempo a linguagem é justamente a condição de possibilidade de sua existência como poeta. É uma posição sem solução. Se a linguagem fosse uma morada segura, eu não precisaria fazer poesia. E ao mesmo tempo as palavras são refúgio, no sentido de que é no discurso que eu elaboro esse desabrigo que é existir.
É um paradoxo intransponível mas que de certa maneira sustenta e dá sentido à minha escrita. Pode ser que tenha alguma relação com a minha pequena história particular: eu aprendi a ler e a escrever ainda meio bebê, muito organicamente, porque fui muito exposta à literatura, aos livros infantis, então juntar os sons das histórias que meus pais liam pra mim com as imagens das letras que eu via nos livros e os significados que meu corpo elaborava sobre as histórias foi meio automático e se tornou o meu modo de estar no mundo. Porque é uma pergunta que a gente jamais vai ser capaz de responder: como pensa um neném que ainda não sabe que as palavras têm significados? E digo dos significados que meu corpo elaborava porque mente é corpo, os pensamentos acontecem no corpo, não existe nada fora do corpo – quer dizer, até existe, mas aí é do campo do místico, que não é o assunto aqui. Enfim, acho que os poemas do livro falam sim justamente dessa dupla morada, o corpo, que vem de fábrica, e essa outra morada que a gente fabrica, inventada, que é a poesia. Então as palavras são mesmo esse portal por onde o vento que leva o telhado da casa da linguagem passa.

 

FERNANDO – A melancolia, a tristeza, e o espanto diante delas, não é na sua escrita efeito de comiseração. Muito pelo contrário, é um efeito de potencializar começos e evoluções. Me parece um poder sublimatório muito forte em suas palavras , sons e imagens. A angústia criadora seria uma condição dos poetas? Que você acha?

MAÍRA – Sim, você tem razão, não são poemas de derrota, de fracasso – ainda que esse seja o título do poema que abre o livro, o que foi uma escolha de certa forma com um tom de piada, para criar um acordo com o leitor, para deixar claro que, como tarefa, o livro já começa fadado à impossibilidade. Na minha cabeça, no processo de escrita e de seleção dos poemas, o livro é sim a narrativa de um começo, de uma abertura às possibilidades, de um jogar as palavras ao mundo, ainda que tendo essa impossibilidade primeira, originária, como um fato. Não quereria generalizar nem romantizar essa ideia do poeta angustiado, que se salva escrevendo. Mas acho que essa virada, esse tentar dar sentido ao absurdo do mundo, permeia a minha poesia e a de muita gente sim. É como se o fazer poético estivesse sempre nessa dobra entre o espanto e o maravilhamento, entre o acometimento, a exasperação, e a beleza, mesmo que na melancolia, uma espécie de deslumbramento. Com as ferramentas próprias às palavras: o ritmo, que é um aspecto importante na minha escrita, que funciona pra mim (muitas vezes até inconscientemente e eu só noto depois) como a estruturação de um deambular entre a contenção e o esparrame; as imagens, às vezes mais, às vezes menos atormentadas, às vezes mais, às vezes menos imediatas; e o que se pode produzir de sentido daí, que aí sim creio ser muito produtivo, criativo, como via de escoamento desta angústia de que você fala.
Nem todos os angustiados são poetas, e também não sei se todos os poetas são angustiados, mas creio sim que as palavras são uma via possível de suportar a agonia.
Suportar, tanto no sentido de aguentar quanto no de ser suporte mesmo. Um amigo me disse outro dia, eu não sabia, que o Leminski dizia que querer que a poesia tenha uma função seria o mesmo que querer que o orgasmo tenha uma função. É isso, e ao mesmo tempo não é isso, porque é inegável que o orgasmo tem sim uma função, não no sentido
utilitarista, mas porque opera um acontecimento. Um êxtase que nos resgata, por breves momentos, da angústia de ser. Então de certo modo, seguindo nessa comparação entre poesia e orgasmo, acho que talvez seja condição de alguns poetas, talvez não de todos, a criação como resgate, como saída, ainda que temporária, da agonia.

 

FERNANDO –  Há um gostosa ironia entre as imagens velozes e potentes da sua imaginação criativa. Como é seus inícios de poemas? Você pensa no humor quando começa escrevê-los?

MAÍRA – Seria mentira se eu dissesse que o humor é algo premeditado, pensado, construído, deliberado em algum sentido específico para os poemas. Mas esse tom irônico diante do absurdo da existência faz parte da maneira como eu vivo, como enxergo o mundo. É algo natural pra mim. Essa ironia autorreferente. Que não é o sarcasmo, é o apontar o insólito das coisas que a gente naturaliza. Reconhecer o dado cômico de cada tragédia, especialmente as minhas (busco não apontar esse cômico nas tragédias alheias, porque às vezes as pessoas se ofendem e é preciso respeitar também essa maneira outra de ver a vida). A vida em si é um deslumbre e um horror. O planeta é um lugar lindo, mas o mundo é um lugar terrível. As pessoas são maravilhosas e extremamente cruéis, basta ver o horror que estamos vivendo em tantas esferas. Então a vida não faz nenhum sentido. Essa vida que a gente conhece, que a gente percebe, isso que a gente chama de estar vivo – isso não faz o menor sentido, por abundantes que sejam as cosmogonias e ontologias religiosas criadas para preencher essa falta. E eu sou uma pessoa com uma prática espiritual muito consistente, mas a verdade é que, sob o meu ponto de vista, a vida é uma grande piada cósmica. O próprio universo é também uma piada gigantesca, estratosférica, literalmente. Então o mesmo absurdo, o mesmo despropósito que cria o assombro diante da vida também pode criar esse olhar um pouco enviesado, um pouco como o zen, de não se levar tão a sério. Nesse sentido, a angústia também pode ser encarada com humor. E isso está naturalmente na maneira como eu escrevo poesia.
Nem todos os poemas são bem-humorados, claro, tem alguns muito sofridos. Mas que eles sejam acompanhados de outros que têm esse tom cômico aqui ou acolá, às vezes em um verso só que seja, dando uma pontuada, isso dá um certo respiro ao livro, eu acho, um pouco de oxigênio diante da dor. Porque no fim das contas só o humor salva.
A poesia salva também, mas o humor salva muito mais.

 

FERNANDO – Se você pudesse com seu livro, filmá-lo, que filme faria? Com quais atores e atrizes, e qual gênero?

MAÍRA – Que pergunta maravilhosa! Acho que seria um filme dirigido pelo Bergman, mas com roteiro do Woody Allen. Uma pegada trágica em cima de algo engraçado. Ou ao contrário, talvez. Um roteiro trágico com uma direção que privilegiasse o tom cômico.
Não, certamente um filme do Jim Jarmusch! Um pouco de poeira dos dias e aquele tom melancólico… Ele fez um filme de zumbis! Quão sensacional isso não é? Taí uma pessoa que entendeu a grande ironia trágica que é a vida. E a morte. A essa altura do campeonato, faz um filme de zumbi… Acho que como ator quereria o Keanu Reeves.
Aquela expressão dele é simplesmente maravilhosa. Acho que dá bem esse tom da inevitabilidade da angústia. Um Keanu Reeves com o fundo do Constantine. Ele faria os homens do livro. Mas não sei se o Jim Jarmusch ia topar. Talvez sim, pelo engraçado da situação. Ou o Michael Keaton naquela vibe do Birdman. Acho que pode trazer também esse tom trágico mas com o fundo de comédia. E obviamente a mulher eu-lírica, se assim podemos dizer, seria a Meg Ryan. Bem neurótica! Ou a Meryl Streep, o que é meio sacanagem, porque ela não teria agenda pra filmar meu livro… Mas naquele tom da personagem que ela faz no As Horas, acho que seria um bom tom pra esse livro. Eu quero pouco, né? O filme certamente começaria na cena do xadrez com a Morte na beira da praia do Sétimo Selo, como um diapasão. Como o prólogo. E na sequência entraria algo bem estapafúrdio, para dar o tom irônico, para já deixar claro que apesar de se tratar de uma tragédia, apesar de a vida em si mesma ser uma tragédia, só nos resta rir dela. E continuar escrevendo!

Please follow and like us:
Be the first to comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial