FERNANDO – No real temos certas distâncias com pessoas de moral dúbia, moralizamos os fatos de notícias onde crimes acontecem, queremos distância destes eventos. Seu personagem narrador repele por ser tão real, mas causa certa órbita em nós por ser tão verdadeiro em suas paixões mesmo que criminosas. Não é apenas falar o que pensa…. e fazer o que dá na telha. Fale um pouco disso.
MAFRA – Eu fui promotor público e juiz criminal durante um longo período de minha vida. Isso significa que trabalhei com conflitos humanos, vividos por psicopatas e criminosos de todas as categorias. Não perdi a oportunidade de estudá-los, moldá-los à minha ficção, fazê-los ressurgir em narrativas e até em poesia. A minha prosa, desde os primeiro contos, está impregnada de seres marginais, ásperos, desconcertantes. No meu terceiro romance, Um estudo em branco e preto, escrevo na primeira pessoa e desenvolvo o discurso por dentro dum esquizofrênico que se sente perseguido, injustiçado, traído pela vida; e se vinga, com palavras que “ferem como adaga repentina…” O livro é um catálogo de alucinações. Para compor a personagem, que não tem nome, fiz uma síntese de tudo aquilo que observei no meu trabalho com processos criminais e diante da própria existência.
FERNANDO – Como é criar um personagem tão espesso nas camadas de certa filosofia do pessimismo. Por onde você começou a desenhá-lo? Alguém vivo?
MAFRA – Conheço vários esquizofrênicos e seus surtos, mas não me inspirei em ninguém de maneira especial. Mesmo os hospitais descritos no romance são de minha invenção. As alucinações, também, foram criadas com plena liberdade. A realidade é vista por um doente mental perverso, arrogante e triste e, pra piorar, muito culto.
FERNANDO – Sua ação entre o que acontece e deixa de acontecer no caso do assassinato da esposa, deixa o leitor desconcertado é um efeito psíquico do personagem? Por que estas reviravoltas entre a vigília e o delírio?
MAFRA – A literatura tem o dever de ser desconcertante.
O termo esquizofrenia é de origem grega e quer dizer “mente dividida.” O meu plano era produzir uma novela policial onde a investigação ocorresse por uma inteligência dividida, fraturada, alucinante. A personagem alterna vigília e delírio.
FERNANDO – A igreja com seus padres e monges é pintada por você com certa dose de ironia. O padres parecem estar muito perto do aspecto até sexual da condição humana. Fale disso.
MAFRA – Os eclesiásticos que aparecem no romance são de outra época, a Renascença. Os costumes eram diferentes dos de hoje. A moral era outra; e outro o regime político. Para o meu psicopata o tempo não é uma dimensão, mas um estado de espírito. E por falar em política, quero acrescentar que Um estudo em branco e preto mostra a política suja que se pratica no Brasil contemporâneo, nunca tão escancarada e grotesca.
Claro que reconheço a função social da religião, ainda que ácido e irônico o texto.
FERNANDO – Seu romance é permeado por um poética desconcertante, onde filosofia, arte, se misturam ao enredo de forma muito musical. Com foi pensar na estrutura melódica do livro?
MAFRA – O meu primeiro livro foi uma coleção de poemas e devo publicar minha Poesia reunida (1950/2020) este ano. Sou fiel à poesia e não me importo se ela invade de vez em quando a minha prosa. Mas ela não perturba o argumento e o ritmo próprio dum conto ou dum romance. Basta ter sob comando a voz lírica.
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