Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em diversas revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito.
Especialista em Escrita Literária. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
Não consigo sossegar meus pés calejados. Fui escorraçada da vida pelo Tição, o que bradava: “Eu sou a lei!”. Esse sujeito, acima de qualquer suspeita, me gerou. Por fim se travestia de comerciante, posseiro, cara e modos de homem circunspecto à vida ordinária. Meus avós sabiam, meus tios sabiam, e o pior, o padre Abelardo Matias sabia, o homem que de mim cuidou, mas deixaram o alma sebosa perambular incólume, dono da aura de sanidade. Tornei-me refém de mim. O Cão me levou a acreditar que eu era o erro.
A minha voz foi rareando à medida que o tempo passava. Com oito anos já não falava mais; dócil, crente na sina miserável, me curvava aos açoites, aos castigos desmedidos, ao praguejar: ao isolamento. O Tinhoso me colocava, no ápice da desgraça, no calabouço de um casebre minúsculo; fez uma prisão nos fundos e omitia-me, quando bem queria, do ínfimo mundo por meses, junta aos porcos – dividíamos lavagens e dejetos. De início, não compreendia o porquê. Eu não falava. Ele não falava. Quando chegava das lidas, das andanças pelas fazendas, oferecendo as astúcias de vaqueiro, pisava firme: alvoroço!, com o rabo cheio de cachaça, e eu mortafome, três ou quatro dias sem comer, via alucinações, demônios: “Cão, Desgraça, Peste bubônica, sai da minha frente, vai arrumar o que fazer!”, era o que dizia, e enchia mais a boca-fossa para descarregar tudo em mim: a sua existência. Corria pra cima. Não me pegava mais, porque, eu, criança grande, saía desembestada; o Cornudo tinha um pé seco de um tiro.
E, depois, pude supor – no tempo de juntar as peças do quebra-cabeça (ainda carece de organização) e de entender alguma coisa – que seria eu a responsável pela morte de mainha. O peso de tudo caiu sobre mim. Sou filha única. Nos dizeres de vó Mundinha, que se escondeu num deslocado do mapa, por medo, fui o imenso desejo de mainha; o único desejo, talvez. Sofreu prenhezes duras no reboliço da vida justiceira. O Belzebu se aportou no cangaço, por vontade própria, para vingar a morte da família.
Mainha não; foi carregada pelo Infeliz à força. Desconsolada, voinha achou melhor pensar que a coitada havia se acostumado. Era o único ser que mainha podia ter e a quem devia veneração – como não, se viu a execução sumária de umas tantas por desrespeito?!
Com a permissão de Lampião pra mulher entrar no cangaço, e a chegada de Maria Bonita, o Cabrunco se sentiu forte: catou a vassala que queria e não se aquietou até amofinar minha delicada mainha. Entrou com treze anos e seguiu, de olhos vendados, o demoníaco traçado, que nem os santos de sua devoção puderam lhe salvar. Arrebentou-se na labutação, Dadá confessou; carregou nas costas, literalmente, o trambolho que foi Cana Rachada. No percurso, seis anos no bando, mainha emprenhou cinco vezes, perdendo todas as crias antes de mim. Colocavam uma mistura de borra de café com estrume, para cicatrizar o umbigo dos recém-nascidos. Claro, meus irmãos morreram de infecção. Tocavam a toada insólita, sem lamentação; a volante vinha furtiva no encalço.
Na minha parição, noite fria e chuvosa, em meio à fuga, pelos lados de Paulo Afonso, mainha se esvaiu em sangue, que não parava por cousa alguma, nem terra, nem estrume, nem planta, nem nada; com o desespero de ficar entocada num juazeiro. O Satanás se acovardou, saiu e se perdeu na mata. Corisco mandou que voltasse ao mesmo ponto, logo cedo. Cana Rachada nada, por ele nada; teve medo da volante, nunca admitiu, o frouxo. Corisco terminou meu parto. Corisco me abençoou e me alçou ao mundo. Estava envolta ao calho do sangue, morto, frio; e a notícia que correu é que, por pouco, uma ruma de urubu teria devorado até os ossos nossos. Corisco fez o sepultamento de mãe, com honras. Mandou que a enterrassem no cemitério de Paulo Afonso. Corisco me entregou ao padre Abelardo Matias. Foram meus melhores dias. No entanto, o cangaço terminou, o grupo se dispersou, e Cana Rachada me arrancou das mãos sereníssimas do reverendo homem. Levou-me à força, como fez com mainha, e deixou o recado: “Eu sou a lei!”. Fazia troça da anistia concedida por Getúlio.
A incontáveis palmos do chão, ao lado dos seus, o anjo caído não me atormenta mais; foi tragado pelas trevas. Teve o destino que mereceu. Muitos pensam que eu tramei. Não fiz esforço, o serviço já estava pronto, programado pelos santos de minha devoção. O dia dele não havia de tardar. O Cão cavava um poço, manual, e um abalo sísmico tratou de afogá-lo plácido, sem sacrifícios maiores. Sofreu menos que nós… Há resquícios do grande coalho de sangue, calcificado, nas pedras de Paulo Afonso. O juazeiro também está lá, intacto. E eu aqui, tentando viver e redimir meus fantasmas, me alijar de mim.
Olá.
Gostei muito do presente texto e do autor.
Desejaria manter contato com ele.
Grato.
Wellington Amancio (editor)