Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; e em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, ambos pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária. Membro do Coletivo de Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
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Essa noite foi a pior. Na disposição dos dias não existe alívio. Em que buraco se enfiou a maldita paz? Sobra um apinhado de coisas impossível de discernir. Eu tinha uma razão para viver. Até dez dias atrás, eu tinha. Troquei a minha vida pela do meu pai. E não falo isso com mágoa, com desgosto por ter abandonado as minhas vontades. Ora, se os meus quereres tinham um destino certo: ele. Todos dizem, parece até clichê, mas posso pronunciar devagar, em outro tom, para que soe o mais claro possível: eu tive o melhor pai do mundo! E, veja a ironia, ele não teve pai. Ele foi criado com uma ruma de gente – dezessete irmãos –, com uma mãe dedicada e amorosa, mas que não possuía o dom da onipresença; teria que dividir sua atenção com os demais. Pedro, o penúltimo na lista. O pai, Luiz, era viajante, muambeiro, cigano, seringueiro e garimpeiro – pelo que sei –, que saía do Ceará para o Pará, com o pretexto de arranjar dinheiro e, assim, consertar as vidas dos que ficavam. Nunca se preocupou com o estrago; nem um centavo a mais para mudar o fado, a não ser para atender aos seus luxos de raparigueiro inveterado. Meu pai me confidenciou, magoado, num dia dos pais, que o dele não passara um ao seu lado; e que teria dividido o mesmo espaço com ele umas, talvez, dezessete vezes – por certo ele falou contando o número de irmãos, das vezes que ele chegava com o objetivo de emprenhar a minha avó; e, com o perdão da palavra, prenhez, que usualmente se aplica a animal bruto, meu pai chorava ao declarar que ele tratava vó, a razão de tudo, como um bicho qualquer, muito inferir ao cuidado despendido a uma jumentinha que ele possuía, de nome Fêmea. Perder tempo falando de meu avô é uma temeridade, não cabe nestas linhas; vim para falar sobre o meu pai.
Pai. Pai de verdade. Ele saiu de Serra Azul com as mãos abanando, sabendo que ali, além de não haver oportunidade, era uma boca adulta para comer e atravancar o destino dos demais – e o seu. Disse que minha avó e dois de seus irmãos, o Edmar e a Luíza, foram os únicos a chorar, sem liberar uma palavra de conforto, de incentivo – modos que não se percebiam naquele tempo, no sertão. Ao chegar a Fortaleza, arrumou um quarto minúsculo no centro, no meio do furdunço, como dizia; com medo até da sombra, porque, como relatou, a “urbe era um bicho medonho. Pensava que seria engolido pelo concreto a qualquer instante”. Pediu esmola para comprar umas roupas e para poder se alimentar, até conseguir um emprego, “de qualquer coisa”. Rodou e conheceu os labirintos da cidade. Penou para juntar, no primeiro mês, o equivalente, hoje, a cento e cinquenta reais, para o aluguel. Comia, muitas vezes, os restos que jogavam das feiras. Não sentiu, por anos, a textura de carne macerada na boca.
Alimentava-se, quase sempre, de legumes e ossos, com os quais fazia sopa e algum embrulho para o estômago invariavelmente vazio. Era o chamado “caldo de bila”, só para enganar. E ele falava rindo, mas um riso nervoso; um riso chocho, para confundir a dor. Logo, concluiu o curso de madureza e ingressou na faculdade de Contabilidade.
Um prodígio, dadas as condições. Havia ocasiões em que tinha de escolher se almoçava ou jantava. E comia bananas, muitas, para escapar da fome. Com cinco anos, trabalhando e estudando nas horas vagas, formou-se: o primeiro “doutor” da família.
Recebeu da mãe os parabéns, contidos, sem jeito, e um abraço curador. Isso já valia por tudo. Passou num concurso para professor do Estado e, aí, nos corredores das escolas, conheceu a minha mãe, também professora. A afinidade lhes rendeu o casamento, a vida a dois, compartida na medida da superação; e dois filhos, eu e meu irmão, Leonardo.
Painho estava aposentado, pronto para se dedicar à escrita, aos projetos artísticos, mas a doença veio voraz. Quando já não havia orientação, quando percebi que ele se batia nas paredes e nos cômodos que estava acostumado a ir, levei-o ao hospital. Com a bateria de exames, constatou-se o câncer em estágio avançado no cérebro. O médico, pragmático e insensível, declarou: “Aproveite o seu pai. Ele terá, no máximo, quatro meses de vida”. Perdi o chão, o emprego e um monte de sonhos – que só se cumpririam a dois. Demorou mais que quatro meses: um ano e dois meses. Talvez o tempo da conformação – que ainda não chegou. Devo conversar com as minhas primas, que passaram por uma situação semelhante, há dez anos. Quero entender o lugar da dor e o meu lugar nesse universo sem sentido. Não sei mais o que fazer; não encontro respostas.
Meu irmão é um poço de compreensão, mas não abandona o trivial – decerto, resignado; entendo e não tiro a sua razão –, assim como a minha mãe, que fala de santos e de Deus, prateando, demonstrando que também não alcançou a bendita aceitação. Então, eu lembro do dia chuvoso em que meu pai fez dezenas de barquinhos de papel, por insistência minha e de meu irmão. Cada barquinho que descia na correnteza era uma aventura e uma tristeza, porque eu queria um novo, para não parar de brincar. Eu tinha o meu pai, há dez dias, para refazer os caminhos, para restaurar a paz. Hoje, não me fale de esperança, de desígnios, de Deus, e de santos, esses que não me socorreram quando mais precisei. Apenas me deixem, me liberem… para sentir – em paz – a devastação do amor visceral.
contato do escritor: adrianobespindolasantos@gmail.com
Que beleza, Adriano!!! Graças a tantos “encontros e desencontros”, continuamos semeando a vida!!!