FERNANDO ANDRADE – Como foi mencionar cada nome de doença com o fazer poético?
RAFAEL OLIVEIRA – Em qualquer linguagem, os signos reverberam explícita ou implicitamente os seus significados poéticos. Na medicina não é diferente. E por isso se pode chegar ao poético, ainda que se aventure pelas objetivas trilhas dos signos anatômicos, fisiológicos, bioquímicos, imunológicos, neurológicos, radiológicos, patológicos etc. Para a ciência médica, a asma será sempre asma, depressão, depressão, obesidade, obesidade… Da mesma forma, o coração será coração na imagem da tomografia, e não outra coisa. De repente surge a ideia de subverter a cientificidade da linguagem médica com a poesia… Daí a pergunta: Como? A resposta está em Manoel de Barros, que acredita ser necessário “molecar” a linguagem, neste caso, a linguagem médica… Assim, as doenças e outros temas da medicina entram na nave abstrata do poético. Na verdade, a linguagem médica e a poética, ao se imbricarem entre si, sugerem o inusitado, o inesperado e o imprevisível. Herme(neu)
FERNANDO ANDRADE – Como a linguagem da descrição da doença difere do trabalho da carpintaria poética da palavra?
RAFAEL OLIVEIRA – Difere pela visão médica e pela visão poética. A primeira se notabiliza pela arte de ler sintomas e sinais para verbalizar um diagnóstico preciso. A segunda, pela arte de perceber o poético, vez que a poesia está em todos os lugares, em todas as coisas. O trabalho do médico envolve análise, interpretação, diagnóstico para, segundo Hipócrates, curar quando possível. Já o poeta precisa perceber, sentir, captar e poetizar o que pousou na sua sensibilidade. Essa é a procura graal do poeta, ou seja, achar no cálice das palavras o sentido poético que se converte em objeto estético e estético no poema.
FERNANDO ANDRADE – Por onde começava os elementos da natureza que são uma constante nos versos?
RAFAEL OLIVEIRA – As referências existenciais, cotidianas, naturais e preferenciais interferem em qualquer sistema ou ato criativo. É pelo simbólico que o poeta ressignifica o sol, a lua, as estrelas, as nuvens, a noite… É pelo simbólico que os conceitos técnicos transmutam-se para a esfera da supra-realidade, na qual uma ideia já consagrada por um sistema de linguagem passa a ser outra coisa. Um exemplo disso é a receita poética da lua para tratar uma insônia, afinal, “comprimidos brancos/de lua são formidáveis/para noites/de sol”.
FERNANDO ANDRADE – Como estes elementos naturais noite, lua exprimem a condição do paciente-leitor.
RAFAEL OLIVEIRA – Para Massaud Moisés, o poeta é o primeiro leitor (receptor) da sua criação: o poema. Antes, o eu-lírico precisa ser (sentir) tocado por algo dentro do visível ou invisível, gerando uma cadeia de sensações através da perspectiva simbólica das palavras. E o fio que alinhava essas sensações é o poético. Por essa razão, o poeta se torna um obsessivo artesão de palavras e versos. Pode-se dizer, então, que o poeta é um paciente-leitor, pois fica lendo/relendo, na bula da vida/tempo, a indicação mais natural para se viver experiências sutis com a poesia. É desse modo que as camadas mais subliminares do poético transfiguram a natureza das coisas para traduzi-la no olhar que sabe atravessar “a noite para atender a um chamado/da lua”.
FERNANDO ANDRADE – Como foi trabalhar com imagens no poema? fale um pouco do seu processo criativo.
RAFAEL OLIVEIRA – É óbvio que um pintor elege diferentes tons de tinta para pintar sua ideia na tela. O poeta, por sua vez, seleciona diferentes palavras para descrever suas ideias no papel. Por isso a arte é uma escolha, uma forma de moldar o poético num poema, numa escultura, numa música, numa dança… Em “O ser e o tempo da poesia”, Alfredo Bosi demonstra que o poema busca a sua imagem. Com isso, a imagem feita de palavras passa a ser um elemento indissociável do poético. É o ponto onde se cria um campo de sensações vibracionais, de imagens, para revelar ou concretizar o sentido do poema. Escrever poemas é como esculpir um bonsai, poda-se aqui e ali até atingir a forma imaginada. Por isso, o fazer poético se remete também ao poema “Catar feijão”, de João Cabral de Melo Neto, pois “Catar feijão se limita com escrever/joga-se os grãos na água do alquidar /e as palavras na folha de papel;/e depois, joga-se fora o que boiar”. Escrever é, obviamente, uma singular tarefa de podar ou catar palavras!
FERNANDO ANDRADE – O elemento figurado é um acento forte na sua construção poética. Seria uma bula para a maravilha com a beleza dos versos o encantamento dos sons das grafias das palavras. Fale um pouco deste trabalho elaborado das palavras que cria sinestesias impressionantes com relação ao som e ritmo.
RAFAEL OLIVEIRA – Entrar no reino da poesia é revestir o concreto com o simbólico. Drummond fez isso muito bem com a pedra, quando nos faz acreditar ou pensar no verso: “tinha uma pedra no meio do caminho”. Na verdade, um (o) verso que assume em si mesmo o papel de transfiguração (subversão) do signo a ponto de deixá-lo na posição daquilo que Gullar chama de “espanto” e outros de encantamento. Esse encantamento nasce da possibilidade de extrair sentido(s) do próprio sentido. É isso que faz o poeta na oficina da linguagem, ao manipular diferentes signos. Para isso segue um bulário composto de teoria e prática para converter os signos da poesia em versos. Esta é, sem dúvida, a maneira de colocar a poesia na caixinha de surpresa das palavras. E das palavras no poema. E do poema na(s) metáfora(s). É assim que as palavras extrapolam o limite do próprio sentido de um significante para que outro(s) sentido(s) cristalize(m) a poesia nos versos. O fazer poético, portanto, é um trabalho de artesão que manipula a palavra-palavra com o cinzel da sua sensibilidade para dar sentido imprevisível à linguagem. No livro “Signos em rotação”, Octavio Paz ensina que “O ritmo é a condição do poema”. Por isso, as sílabas átonas e tônicas se revezam/intercalam no tempo-espaço a ponto de criar, entre o som e o ritmo, uma sinestesia oscilatória capaz de levar (o leitor) ao êxtase do poético.
Be the first to comment