Fernando Andrade entrevista o escritor José Petrola

Jose Petrola - Fernando Andrade entrevista o escritor José Petrola

 

 

 

 

FERNANDO ANDRADE – Você trabalha muito bem os espaços onde o homem se põe a andar, dormir, comer e trabalhar. E para cada lugar desses há um símbolo ou um mote. No primeiro seria um espaço da mente? Daquilo que possa se expandir de seu foco-núcleo, aqui tanto geograficamente quanto na nomeação do ego. Fale um pouco disso.

JOSÉ PETROLA – Sim, o primeiro conto se dá num espaço da mente, uma Lisboa imaginada, não é a Lisboa no sentido literal (capital portuguesa), mas um lugar idealizado, em contraste com a “terra das palmeiras”, o local onde vivemos e trabalhamos e onde qualquer possibilidade de mudança do status quo parece inalcançável. A falta de perspectivas no Brasil, em oposição a essa promessa de uma vida que poderia ter sido diferente em outro lugar. Aqui a marcação geográfica, centro do Rio versus Lisboa, em meio às convulsões políticas de 2013 até agora.
Nesses trópicos que “não têm suspense”, talvez a saída possível seja por meio da fabulação. A insônia do narrador também se confunde com a miragem, que revela o inconsciente, coloca em cena e relativiza o ego. Um espaço de deslocamento de uma realidade ordinária para uma percepção alterada que expõe as contradições da sociedade.
Meus contos talvez tenham algum componente autobiográfico, embora não sejam autoficção (aliás, autoficção é uma utopia). Partem de uma inquietação pessoal sobre os rumos do país e de como eles afetam os rumos de nossas vidas. Isto se revela não só na geografia, mas no uso de figuras recorrentes, como o narrador-personagem que é um funcionário público insatisfeito por se perceber inserido numa engrenagem corrompida e alijado das ferramentas para mudar sua condição. Esta personagem, que já era presente no meu livro anterior, aqui aparece em outras facetas de sua personalidade, através da exploração de estados oníricos: sonho, pesadelo, alucinação.

FERNANDO ANDRADE – Constituir-se é não só dar-se um nome. É formatar-se com um certo chip funcional. Mas o social requer uma certa adaptação normativa, onde o desejo às vezes emperra. Nos seus contos tantos quanto se passa num sertão quanto numa rua de uma cidade grande, parecem gritar uma individualidade que não é cidadã no sentido, vamos dizer… patriótico. E você põe o dedo na ferida nesta situação onde o bicho-homem se conflita com normas sociais. Fale disso. Quero saber o seguinte como é escrita de um conto por trás deste biombo de crítica social.

JOSÉ PETROLA – Os contos de “Insônia Tropical” giram em torno de personagens que têm algum tipo de trauma ou contas ainda por acertar, e são assombradas pela cicatriz do trauma (a doença da noite), da qual não conseguem se livrar porque são cerceadas em suas tentativas de mudança. As personagens se pautam por uma individualidade que entra em conflito com a opressão de instituições normativas como a pátria, a escola, a igreja ou as corporações.
O que eu quero trazer com este livro é que a violência existe e tem suas consequências, tanto para quem vive no centro do Rio de Janeiro quanto para quem está no sertão dos Inhamuns.
Esta ideia pode parecer óbvia, mas é radical nos dias de hoje, em que vivemos submersos por uma ideologia que joga no indivíduo toda a responsabilidade por seu destino, sem considerar a violência que as instituições impõem. Meus contos são sempre pensados como um contraponto a esta ideologia e um retorno a essa realidade vivida pelos sujeitos que estão submetidos a alguma violência. O conto “Sete disparos, sertão” tem algo de metaliteratura neste sentido: o narrador confessa que não conta a história que o pediram que contasse, mas a história que o sertão o obriga a contar, porque é a história de sua vida, da qual ele sofre as consequências. Uma ficção que, embora não pretenda ser jornalismo, alimenta-se do real, buscando o questionamento do mundo.

FERNANDO ANDRADE – Há uma distinta linha de gêneros literários passando pelos contos, ao mesmo tempo que você radiografa as regiões e estados mentais do país. Fale disso, E tocando na questão da violência, há uma parte específica esmiuçando seus efeitos, onde me parece ver até certo humor seu. Comente. Como falar do tema em contos onde o tamanho é sempre não tão desenvolvido. Uma pergunta delírio em camadas.

JOSÉ PETROLA – No conto, a brevidade da forma torna importante tensionar forma e conteúdo. Assim, criei associações entre temas e gêneros nos contos, que foram escritos ao longo de três anos e depois encadeados nas quatro partes desse livro, que correspondem a diferentes zonas geográficas e mentais.
Neste primeiro espaço, do Rio e do Brasil pós-2013, tensionado entre desejo e ressentimento, uso o humor e a ironia em suas diversas gradações. Às vezes, um humor mais escrachado, onde os descaminhos políticos do país são narrados em compasso com as farras dos clientes de um bordel com as prostitutas. Às vezes, um humor mais sutil e permeado por certo realismo mágico, onde o delírio revela com ironia camadas ocultas da realidade.
Quando me volto para um espaço mais delimitado, como os contos que se passam no sertão cearense, parto para uma linguagem mais tradicional, que é tensionada pelas contradições entre arcaísmo e a modernidade: o sertão já não é mais o mesmo, e personagens antes subalternas ganham voz, como Rosana, que se vinga dos abusos de Alcides, ou o menino que ajuda um ex-médico reduzido à ruína.
Nesses contos que se dão em espaços psicológicos mais fechados e tensos, os problemas vividos são os mesmos na periferia de São Paulo ou na Amazônia. Para dar conta do quanto as personagens estão marcadas pelos efeitos da violência, a linguagem é clara, direta, brutal, ao contrário dos formulários preenchidos pelos funcionários públicos. Refletem a busca das personagens por uma salvação, seja em Deus ou no delírio.
Por fim, quando exploro as dimensões mais inconscientes das personagens, os contos se tensionam entre marcações muito delimitadas, como as trilhas demarcadas nas florestas do Rio, e um lugar fora da nossa percepção ordinária de tempo e espaço, onde as personagens, de certa forma, buscam a loucura para recuperar a sanidade.

FERNANDO ANDRADE – A insônia seria uma não forma de se estar no mundo? Quando a anima do personagem não se encontra em movimento? Principalmente em regiões onde há uma certa latência de dificuldade de locomover-se em segurança, como um montanhismo. Os sonhos seriam este montanhismo de trepar sobre as camadas do eu? A visão e a velocidade, o ritmo, a respiração seriam este olhar para uma melancolia do terreno. E assim também a escrita se faria topografia?

JOSÉ PETROLA – Proponho um paralelo entre a literatura, o montanhismo e a experiência psicodélica, uma busca de estados-limite físicos e mentais, onde somos desafiados a encarar nosso lado obscuro, andando num terreno instável e perigoso. A insônia aparece quando a personagem tem seu movimento cerceado, mas também quando ela se vê impelida a fazer uma movimentação arriscada em busca de si mesmo, como o montanhista de um dos contos, transitando entre uma realidade frustrante, o desafio físico das escaladas e a dimensão do inconsciente que o instiga a enfrentar seus medos.
Insônia é também a recusa de um mundo que impossibilita a mudança, mesmo quando mudança significa recuperar um mínimo de dignidade. É este incômodo que leva o escritor a se expressar. Neste sentido, minha escrita é uma topografia destes terrenos escarpados que contrapõem a realidade e o desejo.

FERNANDO ANDRADE – A imaginação e a fantasia são elementos potentes na sua construção de enredos. Como as usa na sua escrita?

JOSÉ PETROLA – Alguns dos meus contos foram literalmente escritos a partir de sonhos, ou em estado de insônia. Anos atrás, tive um terapeuta que me pedia para anotar os contos num caderno, ao acordar, e trazer as anotações para as sessões, e era impressionante ver, através de exercícios de interpretação, como os sonhos podem ser reveladores de intuições inconscientes.
Busco na escrita uma psicodelia no sentido original do termo, “o que revela a alma”, uma percepção da realidade que escapa do comum e questiona as próprias categorias em que pensamos o mundo.
Este passeio pelas fronteiras do inconsciente foi um ponto de partida para vários contos de “Insônia Tropical” – em “Lisboa imaginada”, usei a voz do narrador alternando entre o relato de um sonho e observações sobre a vida “acordada”. Em “Maíra e minhas sete vidas”, o narrador assume vários corpos e individualidades diferentes. Este afastamento de uma percepção comum do real busca romper com a impossibilidade de movimento que leva à insônia tropical.

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