Alguns artistas estreiam como se fossem veteranos. Trazem nos prenúncios de breves projetos os resultados de longos processos e dispensam o amadurecimento que já lhes é inerente. Atuam no primeiro prólogo como se repetissem antigos epílogos. É o caso de Yara Fernandes Souza que debuta na poesia com Sádica Sílaba, num primor de publicação da editora Patuá.
A começar pela ilustração da capa, com um letreiro que desafia a percepção e a continuar pelas fortes ilustrações internas – tudo de autoria do artista plástico Paulo Camargo -, o projeto gráfico de Luyse Costa é um belo útero para a gestação desse muito bem-vindo nascimento poético da paulista Yara Fernandes Souza que, hoje, habita a Bahia, mas que escreve poesia desde os oito anos, sob a inspiração e modelo dos pais, ambos poetas e professores de Língua Portuguesa que ela tão bem aprendeu. Berço fértil, com nutritivo fruto.
Antes mesmo de iniciarmos a leitura já se assevera a qualidade do que virá, expressa no sumário que antecipa e agrupa os temas sob cinco subtítulos que são, em si, pleno registro poético. Cada um deles, um poema em si, desses cuja síntese absoluta abre-se à polissemia capaz de repercutir os sentidos abarcados pelos diversos outros que reúnem sob seu manto de sentidos.
Chega-se, enfim, aos versos propriamente ditos. E, nesse ponto, já não há como fugir da evidência de uma obra pungente que nasce a plenos pulmões para que o mundo ouça seu choro primeiro que, desde o instante inaugural, é canto melódico de versos concisos, sonoros, cadenciados, cujos significados emulam-se com clareza, para além de qualquer afetação de estilo, dessas que muita gente estreante põe à frente da rarefeita capacidade de compor. Apresentam-se em original sobriedade com impactantes resultados sobre o dito: estilo marcante, sem afetação ou vezo de autoafirmação.
Segue Yara apresentando-se a si e a sua poesia, em painéis de temas constituintes do canto que elegeu para seu batismo, prenhemente significado no ato de nomear-se poeta. Brota de suas vísceras a matéria-prima que rima com a própria gestação e anuncia-se o parto de sua grandiosa extensão poética.
E, súbito, os elementos de sua lida cotidiana em outros ofícios e o cenário urbano do trabalho sisífico invadem a cena com a concretude e aspereza do duro contraste para, ato contínuo, sucumbirem ao enlace do verso que dilui sua rudeza ao passo que dela furta o indigesto e transmuta o duro gesto em feitio de mais poesia. Queixa sem lamento, denúncia sem panfleto.
Intensificam-se os recursos no passo cadenciado dos versos: enjambements, neologismos, mais aliterações e assonâncias a ecoar tropos e alegorias, vivas onomatopeias e muita sinestesia. Completa é sua caixa de ferramentas, cujo elenco de recursos nomeio assim salteado para não enfadar. Reina, por isso, a poesia de Yara fabulada na festa dos sentidos animada pela provocação da impecável estilística.
Outro primor, e isso é questão de gosto, eu sei, é ver bem-postas, a par e passo, a precisão semântica e a sintática. Texto feito de norma culta, com pontuação exata, emprestando-lhe fôlego com que respirar e com que elucidar o pleno entendimento à sombra do indubitável, graças ao bom emprego da língua. Nada de transgressões afetadas ou demeritórias para alcançar efeitos questionáveis. Nada de termos postos ao léu (uma exceção, talvez duas) apenas para alcançar uma rima sonora ou uma pretendida
cadência. Há quem nomeie essas escolhas e tal predomínio sintático na lira de verborragia poética. Eu chamo de estilo zeloso com o primordial patrimônio da própria poesia: seu idioma. Mesmo porque, empreendido com grande poder de síntese.
Mais esmero: com delicadeza e força, coisa de mulher bem posicionada num mundo construído à custa de militância contra as gritantes diferenciações de gênero, Yara constrói imagens de grande pujança, impactantes, e transita com elas pelos cenários mais diversos, do fabril ao erótico, do metalinguístico ao lírico, com o conforto e a naturalidade de quem domina tais territórios.
E, diante da derradeira página, eu pergunto à poesia da Yara: como ser tão consciente de si antes mesmo de ter sido parida? Como mostrar-se assim tão bem-acabada em pleno rito de primeira urdidura? E ela responde-me que se trata de coisa de artista que já estreia em consagração. Eu, leitor surpreso, saúdo a chegada da Sádica Sílaba de Yara Fernandes Souza com minha mais humilde reverência.
Luiz Eduardo de Carvalho sempre atuou na intersecção entre Cultura, Educação e Política, tendo emprestado da Comunicação Social as ferramentas para as pontes. Estudou Farmácia e Bioquímica e Letras na USP e formou-se em Comunicação Social na ESPM, é licenciado em Língua Portuguesa pela Universidade Nove de Julho. Foi professor de teatro e redação, publicitário e assessor de imprensa, jornalista editor de arte e cultura, gestor cultural nos âmbitos público, privado e do terceiro setor. Desde 2015, dedica-se exclusivamente à produção literária. Publicou: O Teatro Delirante (2014 – poesia erótica e lírica) pela Editora Giostri; Retalhos de Sampa (2015 – poesia) pela Editora Giostri; Sessenta e Seis Elos (2016 – romance) pela Fundação Palmares MinC; Xadrez (2019 – romance) pela Editora Patuá; Quadrilha (2020 – novela) pela Editora Patuá; Frasebook (2020 – aforismos) pela Edições Karnak; Evoé, 22! (2021 – dramaturgia) pela Editora Patuá.
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